Monday, February 12, 2007

Suficientemente feliz

“És feliz?” perguntas-me hoje. “Sou, sou suficientemente feliz”, respondo logo. Depressa. Temendo que a hesitação me atraiçoe. Temendo que me leias o tom de voz. Temendo que me adivinhes tremendamente triste. E concluas que o nosso amor não chega para me fazer feliz. Ou que o nosso amor me deixa neste estado letárgico de tristeza. Hoje não sei responder com toda a verdade a essa pergunta. Hoje até uma parte da verdade me escapa. Não sei, amor. Acho que suficientemente feliz até não é mau. Já me senti pior. E já quase me esqueci de algum dia me ter sentido melhor. Não sei bem em que lugar me encontro na escala da felicidade. Nunca pensei muito sobre isso. Se calhar prefiro nem saber. Mais vale deixar a ferida sarar ao invés de tirar-lhe a crosta. Ou então (quem sabe?) fazer outro curativo...
Mas tu insistes. “Porque deixaste de falar comigo?” Desfaço em muitos bocados um lenço de papel, enquanto penso numa resposta que fira menos os teus sentidos. Nada do que me ocorre se afigura adequado. Que devo responder-te? Que se me calaram as palavras. Que já não tenho coisas bonitas para dizer-te. Que - acredita - não queres ouvir o que tenho para falar. Que se falar não vou calar-me durante muito tempo. Que afinal são tantas as palavras que tenho para dizer. E dizer-te. Tantas. Atabalhoadas de tantas.
Impaciente com o meu silêncio, voltas à carga: “Antes contavas-me tudo...” É verdade, houve tempos em que simplesmente vomitava palavras. A maior parte das vezes sem as filtrar. Sem as pensar. Era tal a incontinência que falava por cima dos restantes interlocutores. Tu não eras excepção. Tão obstinada estava em despejar ideias que mal te escutava. E quando o fazia era sempre à procura de mote para a minha ladaínha.
Até que houve um dia que me chamaste à atenção. Lembras-te? Disseste-me que não te ouvia? Que nem olhava nos teus olhos quando falavas? Tinhas razão, amor. Toda a razão, concluí, depois de uma breve intro e retrospectiva. Jurei então - a ti e a mim - que ia mudar. Que ia passar a escutar-te. E a escutar-me. E, por isso, a falar menos. Ou melhor, a dizer menos palavras. Nem que tivesse de tomar ansiolíticos para acalmar tamanha verborreia. Não foi preciso recorrer a tais métodos. Aos poucos, aprendi simplesmente a descentralizar o meu mundo. A expandir para fora do umbigo. A olhar à volta. Devo isso a ti, amor. É verdade. Ensinaste-me a olhar à volta. A sair da minha concha de egoísmo e vaidade.
E porque os teus olhos insistem numa explicação, concedo: “Falava muito mas dizia pouco. Na verdade, foram muitas as palavras que reprimi... Mesmo no tempo em que não me calava. Falava, falava, falava. Para ocultar o medo de falar. Entendes?” Olhas-me surpreendido. Como se me visses pela primeira vez. Como se, de repente, me descobrisses estranha. Vou ao encontro da tua expressão incrédula e, com um abraço, peço que me deixes em paz. Que não ouses despir-me a alma.
O que me apetece mesmo é chorar. Em alta voz. Chorar simplesmente. Chorar como uma criança que se perdeu dos pais e assustou-se. Chorar o choro perdido. Chorar o medo de perder-te. Urge saber se estamos a tempo de salvar o diálogo. E o amor. Não digo nada. Não sou capaz. Invade-me uma amnésia de palavras. Como te amo! Por que deixámos crescer o fosso entre nós? Faz-me recuperar a memória do tempo em que amávamos como se não houvesse outro dia. Lembras-te de quando nos sentíamos capazes de tocar o céu? Quando achávamos que ia ser para sempre. Que o encantamento era eterno. E ai de quem se atrevesse a questionar o rosa da atmosfera. Como nos bastavamos! O resto era acessório. Mesmo quando não era.
Entre a divagação e o saudosismo, deixo escapar: “Não quero perder-te...” E porque em ti os olhos brilham e o rosto sorri, fico com a certeza da reciprocidade do amor. E percebo no mesmo instante o quanto sou feliz. Mais do que o suficiente.