Sunday, February 28, 2010

Ensaio sobre os sentidos

Nestas "núpcias com a natureza", a evasão é realmente possível. Num silêncio, diferente de todos os silêncios escutados nas cidades, ouve-se harmonia.

A Quinta do Chocalhinho fica na aldeia da Bemposta, a dois quilómetros de Odemira. Mesmo no coração do sudoeste alentejano. Apenas a quinze minutos das praias da Zambujeira do Mar e de Vila Nova de Milfontes. Tão perto e tão longe. Aqui, ouve-se o cuco e o chilrear de outros pássaros, o zumbir das abelhas, o quachar das rãs e dos sapos... E, outrora, também se ouviu o chocalhar das ovelhas (por isso o nome Quinta do Chocalhinho). Som perpetuado nos guizos que acompanham as chaves dos hóspedes.
Antes de recuperar a herdade adquirida em 1942 pelo avô, de quem é homónimo, Luís Mendonça Freitas viveu em Macau. Esteve lá cerca de quinze anos. Há três, ele e a mulher, Margarida, decidiram trocar o buliço da metrópole pela candura do campo. Luís está intimamente ligado aeste espaço idílico. "É uma referência afectiva bastante forte. Não há como contornar", justifica. Até aos dez anos, enquanto o avô foi vivo, passou aqui muito tempo na companhia dele. E, apesar de ter feito poiso em dezassete cidades diferentes, este é e sempre foi o Sítio. Certeza que o levou a investir na recuperação da propriedade e transformá-la numa quinta de agroturismo. Manteve-se a área, a traça original, as paredes xisto e a calçada de pedra. O lagar de azeite e a casa dos caseiros deram lugar a dez quartos e duas prazentosas salas de estar, onde se combina mobiliário rústico com peça vindas de Macau.
A herdade, com cerca de setenta hectares, tem uma piscina de água salgada e um campo de ténis. E ainda um reduto encantado de sabores e aromas que oferece aos visitantes uma autêntica viagem dos sentidos: a horta biológica. Com couves, alfaces, cebolas, alecrim, alfazema, coentros, uvas, romãs e maçãs. É também um espaço didáctico, onde é permitido ajudar na rega e cultivo, colher produtos e até, para os mais curiosos, desfrutar de alguns briefings sobre a arte de cuidar a terra e seus frutos.
O largo junto à casa principal, a casa que era a do avô e que hoje é a sua, é o lugar de eleição de Luís. Um extenso largo com vista para a horta deitada aos pés dos montes de sobreiros e oliveiras centenárias. E colinas prenhas de trilhos caminhados e por caminhar até à lagoa, à barragem ou simplesmente sem destino marcado. É para aqui que vem nos seus momentos de contemplação e recolhimento. E encontro com as memórias. Ainda se lembra das desfolhadas entoadas pelas mulheres que apanhavam o milho, dos muitos passeios feitos pela mão do avô, dos agricultores alinhados em fila nos dias de receber os pagamentos. Memórias destas e muitas outras coisas que as palavras não traduzem. E só as emoções alcançam.

Friday, February 26, 2010

“Mi casa es tu casa”

Lugar tranquilo que aquieta os sentidos. Para os desassossegar. Tranquilamente. Ninguém passa por La Comarcal por acaso. “O universo conspira” para que tal aconteça. Só pode...

La Parra, a 60 kms de Badajoz, é um lugar bucólico, com cerca de 1500 habitantes. Com gente serena e atmosfera tranquila. Tesouro guardado por entre pastos e oliveiras, onde a calma espreita no dobrar de cada esquina. Na melodia das aves, nas portas deixadas abertas pelos moradores casa sim, casa não, no vagar dos gestos, nos diálogos murmurados de quem vive um compasso de tempo que não é o nosso.
Foi neste lugar, onde nos chamam pelo nome próprio, que Lúcia Dominguín e Carlos Tristancho edificaram La Comarcal, um surpreendente hotel para viajantes. Casados há mais de vinte anos, os dois - artistas de vocação e carreira - abriram mão da movida de Madrid pela tranquilidade rural de Badajoz. Aqui se apaixonaram pela antiga casa senhorial do secúlo XVI, que já albergou o serviço comarcal de trigo (daí o nome La Comarcal). Há cerca de três anos, investiram três milhões de euros e meteram mãos à obra sem macular a traça original. Das longas discussões criativas e do sentido estético de ambos, surge a harmonia de um espaço de sonho.
Dois mil metros quadrados é a área total de La Comarcal. A fachada, discreta, não deixa advinhar a área que se expande depois de passar o portão de inspiração árabe.
Ao entrar, paredes meias com a recepção, fica a sala de degustação que exibe nas prateleiras preciosas caixinhas de madeira recheadas com sabores da Estremadura, como marmelada de figos, mel de eucalipto, patés, vinhos e azeites diversos.
Sobem-se alguns degraus e temos pequenos recantos de bem estar. É também o acesso a três das seis suites que constituem o hotel. Um pouco mais acima, estende-se a principal sala de refeições, que outrora foi lugar das cavalariças da casa. Os solos de pedra, originais, com desníveis e irregularidades, a que se adaptaram as cadeiras e mesas, marcam a personalidade do espaço. Os lavatórios da casa de banho comum, aproveitados das antigas mangedoras dos animais, são também sui generis. O restaurante dispõe ainda de pequenas salas para refeiçoes mais intimistas, onde não faltam sofás e pufs para os comensais desfrutarem da tão abençoada sesta depois de apreciarem as delicias gastronómicas da região. Pratos típicos confeccionados e servidos por donas de casa locais ( e não cozinheiras) que apresentam receitas recuperadas das mães e avós. A sopa de picadilho, a carrilhada de porco ibérico ou a simples sobremesa de morangos com sumo de laranja são algumas das iguarias que se podem desfrutar. Aqui o pretensiosismo não tem lugar à mesa.
Um pouco mais acima, fica a cozinha, a sala do pequeno almoço e as restantes suites. As encantadoras suites. Todas elas amplas, coloridas e com o intimismo das casas de campo. Cada uma com sua singularidade. A descomunal e surpreendente banheira de banho munida de dois chuveiros dourados. A cama de sonho com colchões especiais de penas de ganso, feita para o descanso e o deleite. O casamento entre os móveis recuperados das casas locais e outros desenhados de propósito. Cada um com sua singularidade.
Finalmente, o último lance de escadas. O que dá para o terraço com vista sobre a planície. Dali se vislumbra um pôr do sol único na quieta paisagem de La Parra.