Wednesday, November 30, 2011


Têm sido dias difíceis para Maria do Mar. Não sai de casa há quase duas semanas. Apesar da insistência da mãe para retornar às aulas. Incrédula com a separação e ainda com as feridas em carne viva não quer ver ninguém. Não quer explicar aquilo que nem ela compreende. Sabe que a curiosidade das pessoas não se faz de rogada. Que as perguntas e, pior, as opinões hão-de surgir mesmo contra a sua vontade. Não quer ser alvo da conversa alheia. Quer menos ainda reencontrar o António ou vê-lo com a nova namorada. Mas se, por um lado, a ideia a repugna, por outro, é imensa a vontade de ver como ela é. Curiosidade de gaja. E aqui não há qualquer espécie de auto-comiseração. A ideia é mesmo saber quem é a outra, identificar-lhe os defeitos e, no fim de contas, concluir que não vale grande coisa. O processo é meio caminho andado para esquecer o sujeito de tal escolha. 
Por isso e porque a vida continua, Maria do Mar acorda decidida a ir às aulas. Afinal, perdeu o namorado mas não vai perder o ano. Isso é que nem pensar. Eugénia, a mana mais velha, está a ser uma das alavancas da sua auto-estima. Entre conselheira e ouvinte atenta, é um pouco de tudo. Hoje até lhe emprestou um vestido curtinho de cores garridas para levar à escola. É uma aliada e pêras. Como, aliás, toda a família. Porque os garanhões podem não trocar muitos beijos, abraços ou palavras doces mas promovem o carinho, a cumplicidade e o bem estar entre eles.

Monday, November 28, 2011


Maria do Amparo deixa de estar um pouco inquieta para estar muito preocupada. Em casa todos dormem à excepção dela e do filho mais velho. O marido veio cansado e deitou-se cedo. “Graças a Deus. É menos um que s’apoquenta…”, conclui  agradecida pela circunstância.
À quinta-feira,  a filha chega por volta das vinte e três horas. Já com o desconto dos mimos ao namorado. “Se calhar perderam o autocarro. Ou andam os dois nos melos. E eu aqui que não m’aguento dos nervos. Que raios… A que horas vai ela comer?” Maria do Mar tem sempre a mãe à espera. E o jantar, tapado com um guardanapo (não vão as moscas fazer banquete).
Os ponteiros do relógio marcam meia noite e quarenta. E prosseguem o movimento a cada segundo que passa.  Não há preocupação que os retenha. Porque o tempo existe. E vai  existir sempre. Alheado dos contextos que o envolvem.
Sem aguentar de aflição, Maria do Amparo prepara-se para sair à procura da cria. Já de casaco aos ombros, o telefone toca. Corre a atender, com o coração a sair-lhe pela boca. Do outro lado, Maria do Mar. “Mãe…”, sufoca num choro convulsivo.
“Então filha, o que tens? O que foi  c’aconteceu? Tou pr’aqui numa tormenta que só Deus sabe… Estás onde?”
“O Kadhafi acabou comigo, mãe. Arranjou outra… ”, o choro inadvertido não a deixa concluir a frase.
“Tem calma, filha. Tudo tem solução. Só não há remédio pr’à morte.” 
“Ainda estou no Funchal.”
“Nossa senhora nos valha! E agora como é que vens pr’a casa? A esta hora da noite não há autocarros…Onde é que tás?”
“Na Marina. Desculpe mãe, o tempo passou sem dar por isso…”
“Fica ao pé da paragem. O mano vai já ter contigo. Tem calma.” 
Entretido com um filme de acção, João José ainda não sabe que a vai buscar. Alheio às horas, não dá pelo atraso de Maria do Mar. Mas em poucos segundos a mãe põe-no a par do que se passa. Sem vacilar um instante, corre do sofá para a mota no encalce da mana. E segue veloz. A protestar contra o estuporado que a faz sofrer.

Thursday, November 24, 2011

Maria do Mar corre em direcção à avenida marginal, a Avenida das Comunidades Madeirenses, mais conhecida por Avenida do Mar. Nem de propósito. Devastada e torpe de raciocínio fica por ali horas e horas a deambular. Sem noção do tempo que passa. Até não lhe restarem forças e decidir sentar-se na ponta do Cais. A olhar o mar. Quase sem vê-lo. Mas a sentir a pulsação às ondas que beijam a muralha. De cara salgada e coração estilhaçado. “E agora?”, a pergunta surge-lhe vezes sem conta e sem respostas. Agora, nada. Nem aulas, nem autocarro de volta, nem casa. Não quer saber de nada. Agora apenas sabe a dor que sente. A dor que chega a ser física de insuportável. A dor para a qual não tem analgésico. A dor que só o tempo cura. Para ela,  eterna. Porque a dor é eterna quando a sentimos. Como o amor. 
O tempo continua a passar. Nada faz parar os ponteiros dos relógios. Nem a dor maior de todas. O da Sé Catedral marca meia noite e quarenta quando de repente olha para trás. O adiantado das horas desperta-a da comiseração em que se encontra. Toda a dor se faz acompanhar de uma espécie de auto-piedade. “Meu Deus! Tenho de ligar já para casa. Estão todos aflitos com certeza.  E agora, como saio daqui? A esta hora nem tenho autocarro…” Com este monólogo em alta voz, levanta-se num salto à procura de cabine telefónica. Porque a família está alarmada. E a dor que sente pode esperar.

Wednesday, November 23, 2011


António permanece sentado. Sem reacção aparente. Tem vontade de chamá-la de volta e correr atrás. Mas o desalento cola-o à cadeira. Como se tivesse desaprendido de andar. Sente-se desleal, triste, perdido. Pesa-lhe o sofrimento que está a causar. Pesa-lhe mais ainda o vazio que começa a sentir. Afinal está a desmerecer o primeiro amor. O único amor até há meia dúzia de dias. “Se ela não tivesse ficado em casa nada disto estava a acontecer…”, justifica em busca de conforto, referindo-se aos dois dias que Maria do Mar tem febre e falta às aulas.  É sempre mais fácil encontrar um bode expiatório quando o coração (nos) atraiçoa. Os homens são peritos no assunto. 
Voltando aos dias da febre,  os dois combinam que António vai na mesma à escola e tira os apontamentos para não se perderem da matéria. Assim acontece. Mas com uma inesperada nuance: a teia de sedução por parte da colega das aulas de português. Atraída pelo ar rufia de Kadhafi,  Cristina retém-no na sala a pretexto de esclarecer uma dúvida. Senhora  de fortes argumentos, entre os escorridos cabelos oxigenados e os generosos seios a saltarem do decote, convida-o a dar uma volta. Continuando a insistir no pretexto. Inexperiente mas já com ronha, ele percebe que as dúvidas, a existirem, não são da parte dela. Ainda equaciona uma desculpa mas a curiosidade é maior do qualquer outro pensamento. À mercê desta mulher bonita, astuta e com piquinho vulgar, a adrenalina dispara-lhe. De pernas bambas e sem encontrar as palavras adequadas, apenas gesticula em sinal de aprovação. 

Tuesday, November 22, 2011



“Precisamos de falar.” A frase, proferida em tom solene e sem sorriso, tem a força de uma sentença. Nunca o tinha visto assim. “Precisamos de falar! Desde quando avisas que precisamos de falar?”, inquire sem fazer uso das palavras. Alvoraçada. O instinto é a maior certeza que a mulher tem. E o instinto diz-lhe que vem aí a conversa mais difícil da sua vida. De coração angustiado, Maria do Mar congela o olhar nos olhos de António, que se baixam atrapalhados. Instala-se o silêncio. Comprido e com ruídos. Interrogações e exclamações da parte dela. Dúvidas e peso de consciência da parte dele. Agora não há como voltar atrás. Pior do que saber é não saber quando se sabe que alguma coisa se passa. Elementar, meu caro Khadafi. Estão sentados na esplanada junto ao liceu Jaime Moniz. Falta meia hora para a primeira aula do dia. Ele prossegue. “Acho que estou a gostar de outra pessoa… Ainda  gosto de ti mas preciso de um tempo…” Um tempo. A clássica desculpa dos homens, mesmo quando sabem que não há tempo que os valha. Melhor dizendo, que as valha. A chavelha experimenta uma espécie de náusea e, sem saber o que dizer, faz que sim com a cabeça. Deixando escapar duas lágrimas gordas, que lhe caem no colo. Mais duas. Outras duas. Por esta não esperava mesmo. O amor da vida dela já não a quer na vida dele. Ou não sabe se quer. Está a gostar de outra pessoa. Mas que outra pessoa? Como se atreve gostar de alguém que não ela? Como não percebeu nada? Estão sempre juntos. Que raio de brincadeira é esta? Hoje nem é o dia das pêtas. Não, não é. E os olhos comprometidos dele dizem que é verdade. O tempo acabou para os dois. Com a alma contorcida de dor, Maria do Mar sai a correr. Não sabe para onde vai. Tão pouco quer saber. Já nada importa. A aula, entretanto a começar, não tem importância. Estudar não tem importância. Nada de nada importa.  Apenas a dor que sente. A maior das dores que alguma vez sentiu.

Monday, November 21, 2011


Passaram dez meses. O ano lectivo está a poucos dias do fim. O ciclo é já um dado adquirido. Estão a fazer dois em um. Não tarda ingressam no ensino secundário. Ao contrário das expectativas de amigos e familiares. Que eram baixas para os mais crédulos. Quase inexistentes para os desconfiados. Isso também os conserva motivados. A cada dia que passa, a cada teste que fazem, a cada nota que recebem. Afinal são adolescentes em plena idade do contra. Quanto pior, melhor. António ajuda-a nas disciplinas de português, inglês e história. Maria do Mar ajuda-o em matemática, ciências e desenho. Não tem sido fácil. Os up grades implicam trabalho e esforço. De um dia para o outro trocam a inércia pela responsalibidade. A ignorância pelo conhecimento. A rua pela sala de aula. Mas, como diz o povo no alto do seu saber, primeiro estranha-se, depois entranha-se. E se, por um lado, perderam em tempo de ócio, por outro, ganharam em privacidade. A hora de recolher estendeu-se e o mundo deixou de confinar-se à baía de Câmara de Lobos. Entre uma ou outra gazeta, um ou outro feriado, não faltam oportunidades para as escapadelas românticas. O parque de Santa Catarina, um esplêndido jardim com vista sob a enseada do Funchal, é o reduto preferido para passeios a dois e outras intimidades. Continuam apaixonados. E estão a crescer. O futuro configura-se mais nítido. Os sonhos de cada um - com muitos pontos de interseccção -  têm agora pernas mais atléticas para andar. Correr até, se for preciso.

Thursday, November 17, 2011

      Maria do Mar está de volta à escola. Decide quase por arrastamento. A motivação é lírica: estar mais perto do amor. António vai estudar em regime pós-laboral por insistência da irmã. Lúcia é secretária de direcção num organismo público. Quando o pai desaparece (o sentido é  literal visto nunca mais ter aparecido e ninguém saber que destino levou), começa a trabalhar como empregada interna na casa de uma abastada família de médicos. Não há anjo da guarda que a poupe da responsabilidade do sustento familiar. A mãe, iletrada e de coração esmigalhado, é incapaz de o fazer. Cabe então à primogénita, na altura com dezasseis anos, assumir as rédeas. Não é pêra doce mas faz do contratempo uma oportunidade. Com o incentivo dos patrões - e porque tem  planos de vida menos limitados - inscreve-se nas unidades capitalizáveis e conclui o liceu. Hoje é apontada como a betinha do sítio e prepara-se para alugar um apartamento xptz no Funchal a meias com o namorado. Não quer sair, no entanto, sem deixar a casa arrumada. Que é como quem diz, encarrilhar o irmão. Há anos que usa de fortes argumentos para o convencer. Consegue finalmente. As despesas são por conta dela até Kadhafi ter uma idade mais empregável. Fica então decidido. O casalinho de chavelhas retoma os estudos. Vão juntos, frequentam a mesma classe e voltam juntos no penúltimo autocarro. Maria do Mar estranha a responsabilidade e a falta de tempo e liberdade para cirandar pela rua. Ela não sabe mas a seu tempo saberá, são menos os custos que os benefícios do novo desafio.



Monday, November 14, 2011

      Hoje é sábado, dia de limpar a casa na casa da família “garanhão”. Todos os dias se limpa mas ao sábado limpa-se mais. À excepção das crianças, os que estão em casa ajudam na empreitada. Maria do Mar tem por sua conta o quarto que divide com os irmãos mais velhos. Conceição trata do quarto dos mais novos.  Rui está incumbido da sala e do corredor. Eugénia limpa a cozinha. Teresa, a casa de banho. Emanuel varre o quintal e lava-o de mangueira, depois de regar as plantas. A mãe orienta as crianças e prepara o almoço. As limpezas fazem-se quase sempre ao som da rádio. Hoje Maria do Amparo acordou triste, melancólica e com vontade de ouvir Amália. Mesmo a contra gosto dos filhos põe o disco de vinil a tocar e esganiça por cima da voz da fadista. “Foi por vontade de Deus que eu vivo nesta ansiedade, que todos os ais são meus…” Canta para espantar a mágoa que sente. A noite de ontem foi feia à custa de uma troca de palavras feias com o marido. A paciência esgota-se-lhe. É bom homem mas o hábito maldito da bebida quase deita tudo a perder. “Que raio de vício que só serve p’a m’azucrinar a cabeça…”, desabafa entre dentes, quando se perde da letra do fado, ainda a matutar nas ofensas trocadas. Palavras rematadas com violência, apesar de não sentidas. Palavras que puxam palavras num  braço de ferro absurdo. A páginas tantas, a ver quem magoa mais. Ele, por trazer vinho martelado no bucho e estupidez na cabeça. Ela, por trazer amargura no coração de o ver chegar assim a casa. Ainda que seja uma vez por outra.

Saturday, November 12, 2011


      Olham nos olhos um do outro à procura de aquietação. Os dois cúmplices, tímidos, agitados. Trocam um beijo fugaz e poucas palavras. Sentam-se no sofá e numa espécie de reflexo condicionado António liga a televisão. A voz histriónica da Júlia Pinheiro serve o propósito de descomprimir o ambiente. Pinta o silêncio, pelo menos. Hoje mais longo e bastante mais incómodo. Maria do Mar agarra o momento. Afaga-lhe os cabelos e vai à procura de um beijo. Mais dengoso do que o primeiro. As mãos dele envoltam-se na cintura dela e, como se tivessem vontade própria, escalam em direcção aos seios endurecidos. Quebra-se o gelo. Ele despe-a desajeitado. Ela despe-o com a mesmíssima falta de jeito. Sem querer, estão também despidos do atrevimento que os caracteriza. Nenhum ousa olhar o corpo nú do outro. António leva-a pela mão ao quarto minúsculo e à cama minúscula onde se deitam. Inflamados de excitação, roçam os corpos - ainda há pouco de criança - em movimentos frenéticos. Sabendo que tão cedo não gozarão de uma oportunidade destas. E como se quisessem pôr em dia o tempo que estiveram à espera e o tempo que hão-de esperar de novo. Com urgência de chegar ao fim. Porque a primeira vez é quase como se fosse a última. Mas apesar da explícita tensão sexual, os jovens amantes não se esquecem do preservativo e, já pouco intimidados, colocam-no a meias (entre risinhos). O corpo dele volta a juntar-se ao dela. O sexo dele procura o dela. Entra nela, paulatinamente. Puro instinto.  Como o recém nascido encontra o seio materno. António e Maria do Mar encontram-se.

Friday, November 11, 2011



     O dia tão aguardado chega. Kadhafi acorda bem disposto.  Levanta-se a cantarolar e vai certificar se a mãe e o irmão sempre foram à consulta. Apanha-os ainda de saída. Pede um troquinho e despede-se aliviado. Ufa. Mais excitado do que nervoso. Bebe um copo de leite e come uma fatia do bolo que sobrou do aniversário da irmã. Logo de seguida toma duche, faz a barba (que é como quem diz rapa meia dúzia de pêlos a jogar à bisca), penteia os cabelos com as mãos (como é uso e costume), põe os calções azuís e a t-shirt branca. Concluída a produção, sai em direcção à farmácia. Agora sim, está nervoso. E abarrotado de pudor. É a sua estreia como homem. E tem vergonha de pedir os preservativos. Já os devia ter comprado no hipermercado. Deixou passar a oportunidade e agora não tem tempo de lá ir. Não há como dar a volta à coisa. São os dois muito jovens e nem um nem outro tem onde cair morto. Uma gravidez está fora de questão. Completamente. Por isso tem mais é que ganhar coragem e comprar os preservativos. Assim é. Na farmácia estão apenas dois desconhecidos e a operação corre com normalidade.
      De volta a casa, outro embaraço se lhe ocorre. E se no momento nada acontece? Enfim, isto de fazer sexo tem muito que se diga. Sobretudo, se é a primeira vez. Inexperiência mais pudor mais receio é uma soma alta. Ainda que a contrabalançar com paixão mais desejo mais curiosidade. A divagar neste caldo de emoções, a campaínha toca. Maria do Mar acaba de chegar. 

Thursday, November 10, 2011


     O dia tão aguardado chega. Maria do Mar desperta em sobressalto. A noite foi agitada. Intermitente. A dormir e a acordar de hora a hora. Mais nervosa do que excitada, levanta-se e trata logo da questão higiénica. Com um cuidado particular, hoje. Toma banho de imersão com os sais que a tia trouxe da Inglaterra. Rapa debaixo dos braços com a lâmina de um dos irmãos. Apara os virilhas com a tesoura da mãe. Põe o creme de corpo da irmã mais velha (que estava bem refundido no armário). Veste a saia e o top da Berska que ganhou no Natal. Escova os dentes e os cabelos. E planeia saltar o pequeno almoço quando Maria do Amparo lhe prepara duas torradas e um sumo de laranja. Come a contra gosto “mas é melhor assim”, admite. Escova novamente os dentes, põe after shave do pai na nuca (porque quem não tem cão, caça com gato, já dizia a avó), dá um beijo à mãe e sai porta fora. Vai de coração aos pulos  à descoberta do amor físico. Leva dúvidas, receios e uma grande curiosidade.
  


Tuesday, November 08, 2011


      Para sempre não será certamente. O primeiro amor nunca é para sempre. Jamais se esquece. Mas não é para  sempre. Circunstância a que Maria do Mar e António estão alheios. Para eles, o amor é eterno. Ponto final. E ai de quem disser o contrário. O namoro segue de pedra e cal. A paixão expande a cada dia que amanhece. Deixa de haver espaço para o mundo à volta. Os dois bastam-se. Ora no sítio dela. Ora no sítio dele. Com a benção das famílias. E alguma vigilância. Faz parte. Passam as manhãs e as tardes juntos. Só não passam as noites porque não estão autorizados. Somam-se os planos de futuro, as cenas de ciúme, os amúos, as pazes, a vontade de se descobrirem sexualmente. Uma pequena ousadia aqui, outra ali e não mais do que isso por falta de ocasião. Que não faz só o ladrão. Faz também os amantes. Sempre com gente por perto, os dois não têm remédio senão refrear os ímpetos. Até que a oportunidade lhes bata à porta. Kadhafi, o mais desesperado, conta tornear o assunto em breve. O irmão tem consulta de oftamologia no Funchal e vai com a mãe. A irmã trabalha das nove às cinco e o pai há anos que deixou de dar sinais de vida.
      Saíu um dia sem adeus nem até logo. Não voltou mais. Não se sabe ao certo o que aconteceu. Fala-se que terá caído ao mar tais os pifos que apanhava. Fala-se que teria uma amante e com ela emigrou. Fala-se que o terão morto num ajuste de contas. Os rumores por estas bandas são pródigos. Certo, certo é que não voltou. Deixou a mulher com três filhos nos braços e à mercê do rendimento mínimo.
  



  


Sunday, November 06, 2011


      Porque a dormir o tempo parece passar depressa, vai para a cama cedo. Logo depois do jantar. Avisa as manas e os manos que  partilham o quarto com ela para não a acordarem quando se forem deitar. Amanhã é um dia importante. É o seu primeiro encontro. Não combinou a hora mas a seguir ao pequeno almoço parece razoável. Como se houvesse razoabilidade no amor. Adormece a pensar nele.  Acorda com o mesmo pensamento. Pelo meio, sonha com ele. O coração tem destas coisas. Levanta-se a cantarolar, toma um duche rápido, ignora o pão com manteiga e deixa o café com leite a meio. Tal a urgência de sair. Tal a urgência de chegar.
      No largo do coreto, não há vivalma à excepção de dois taxistas e um velhote que passa. Vai até o banco da ponta de lá e fica à espreita, de pescoço esticado. Passam quinze minutos. Uma eternidade, portanto. Já impaciente, vê ao fundo o irmão dele mais novo. Vem a correr. Vem de papelinho na mão. “Estou no beco á tua espera.”, diz o recado que traz um erro ortográfico e dois corações rabiscados, um sobreposto no outro. E se as pulsações dela estavam já aceleradas, agora então seguem velozes. Ao ritmo da corrida para os lados dele. Ao alcançar o beco, dá com o Kadhafi a meio caminho. Sente-se estranha. As pernas tremem-lhe tanto que receia andar de forma ridícula. Ele sente o mesmo. O mesmo receio. O mesmo tremor. A mesma velocidade nas pulsações. Porque a descoberta do amor é um decalque. Já perto um do outro sorriem tímidos, apaixonados, felizes. E o momento pede um beijo. O primeiro beijo dela. O primeiro beijo dele. Uma explosão de emoções. O calor no rosto. O arrepio na nuca. A náusea no estômago. E a vontade de ficar assim. Para sempre.


Saturday, November 05, 2011



     Albertina, a mãe do rapaz, vem à porta. Ao deparar-se com a filha do garanhão, não disfarça o espanto. “O que será que a pineca quer?”, questiona-se esboçando um sorriso tão forçado quanto desdentado. “Desculpe, boa tarde, venho saber do Kadhafi, desculpe, do António… Tem andado desaparecido nos últimos dias…”, justifica. Mais medrosa do que vinha, perante a figura horrenda da mulher. Mas logo por detrás daquele rosto maltratado pela vida, surge o seu mais que tudo. Lindo. Despenteado. Corado, graças à  febre e à visita surpresa. “Tenho estado com gripe…”, explica quase tão acabrunhado como ela mas sem perder o sorriso malandro. A mãe - rude, ignorante mas nada parva - dá meia volta e recolhe-se. Percebe que está ali a mais. 
     Os dois ficam de olhar parado um no outro. Sem palavras. E sem necessidade delas. Os olhos falam o que é importante. As pulsações aceleram atarantadas. A vontade de rir é imensa. Quase tão grande como a felicidade que sentem. Foram apanhados desprevenidos pela piada do amor. Ao mesmo tempo. Soltam uma gargalhada. Ao mesmo tempo. O rosto dela está corado como o dele. E não é de febre.
     O tempo passa a correr. O dia faz-se escuro sem pedir licença. Antes que a família venha no seu encalce, Maria do Mar despede-se apressada: “Vou-me embora. Amanhã vais ao largo?” Ele diz que sim e dá-lhe a mão apertando a dela com força. Ela desprende-se, tímida de novo. Sorri sem jeito e corre beco fora. Vai feliz. Vai apaixonada.

Friday, November 04, 2011


      No beco do António, nem sombra dele. “Que coisa! Onde é que se meteu o gajo?”, indaga a pequena já bastante arreliada. De volta ao centro da vila, passa pela praia de novo. Nada dele. Contorna o orgulho e pergunta aos amigos que encolhem os ombros. Desconhecem também o seu paradeiro. De repente, é como se tudo conspirasse contra ela e o amor que lhe cresce a galope no peito.  Não entende onde “diacho” se meteu Khadafi. Por coincidência ou não,  ontem à noite viu na televisão o homónino dele, o verdadeiro por sinal, morto com um tiro na cabeça. Passaram a imagem do ditador vezes sem conta. “Coitado…” conclui, impressionada com tamanha bandeira de desgraça. Apesar de ignorar o contexto político. O pensamento traz-lhe arrepios de mau pressentimento e só lhe apetece chorar.
      Já de regresso a casa, muda de ideias e inverte a marcha. Vai outra vez para as bandas do “russo” lindo. Não sossega enquanto não souber dele. No caminho convence-se de coragem para bater-lhe à porta. Tem vergonha mas não aguenta  prolongar esta inquietação desatinada. De repente são tantas  as emoções que perde o controlo da coisa. Está mais frágil do que alguma vez. Isso irrita-a bastante. Até hoje de manhã era livre. Livre. Livre.

Tuesday, November 01, 2011



     Maria do Mar acorda a pensar no António. Sente-lhe a falta. Há três ou quatro dias que não o vê. “Logo, logo vou ter com ele”, decide em tom marotinho. Deve andar pela praia. Quase de certeza. Não sabe bem o que se passa mas estar apaixonada é uma forte possibilidade. Só de pensar o coração quase lhe salta do tórax. Levanta-se e corre a tomar o pequeno almoço. Não há tempo a perder quando o amor dá sinais. Já dizia o poeta “é urgente e fundamental”. Lava a cara, apanha o cabelo num rabo de cavalo, põe o creme da mana mais velha, refundido na gaveta, e corre para o calhau na expectativa de o ver. Estão os amigos, ele não. Fica por ali a passear junto à babujinha. A olhar desesperada para todos os lados. Quase o clona nos rapazes alourados que vê passar. E até nos menos alourados. Porque o coração vê mal com os olhos… 
    Não consegue ficar por ali. O sol está a agoniá-la. Julga ela ser o sol, pouco ou nada habituada à vertigem  do amor. Sai da praia a correr até os lados da casa dele. A vontade é de chorar. Quando o vir, dá-lhe um beijo. Como ele tantas vezes pede. Tem a certeza que não passa de hoje. Apesar de não saber como se faz. “O nariz deve atrapalhar bastante. E como é com a língua?” Receios que agora parecem vagos. Agora que sabe mais do que nunca o que é uma pessoa importante. Agora que tem as pulsações descontroladas. Agora que dava tudo para o ter perto...