Monday, December 19, 2011




Uma família feliz é um quadro bonito. Uma família feliz depois de um grande desgosto é um quadro enternecedor. Com o pai de volta são e salvo, o ambiente é de festa na casa de Maria do Mar. O chefe de família vem cansado, um pouco desidratado mas grato por estar vivo. E pelo amor que o aguarda. As famílias pobres madeirenses são barulhentas quando estão felizes. Também o são quando estão infelizes. À semelhança das famílias pobres italianas. Quase indiferentes ao estado debilitado do recém chegado, todos querem saber pormenores do que aconteceu. O pai, já em descompressão e com dois ou três copos de vinho bebidos, conta tudo. “Eram ondas de cinco, seis metros ou mais… Nunca tinha visto o mar reinar assim! O Pesquita (barco de pesca) aguentou-se bem mas o Zacarias foi cuspido p’ó mar às piruetas. O gajo teve sorte não se ter partido todo. Vocês não imaginam como ele se agarrou à bóia com toda a força. Coitado, ficou foi roxo de frio. É por isso qu’ele teve qu’ir p’ó hospital. Graças a Deus não é grave. Felizmente, o barco da marinha chegou mesmo a tempo. Já ninguém tinha força. Nem p’ra gritar nem p’ra rezar… ” Enfatiza aqui e ali como, aliás, adora, arrancando dos ouvintes gargalhadas sonoras. Gargalhadas histéricas. Mais pela alegria de o terem de volta do que pelas graçolas que acaba de inventar. A algazarra é tanta que não há quem consiga dormir nas redondezas. Mas ninguém se queixa. Os vizinhos estão, naturalmente, solidários. O garanhão está vivo. É mais do que motivo para celebrar. Um “milagre” tão oportuno. Não tarda nada é Natal. E Natal significa família. Sem tirar nem pôr.

Sunday, December 18, 2011

Esperar por notícias em casa não faz o feitio de Maria do Mar. Em casa, o tempo cresce exponencial. Os segundos parecem minutos. Os minutos parecem horas. Vai até o cais, está decidido. Sem apelo nem agravo. E leva a mãe pelo braço. Mais que não seja, para a sacudir daquela angústia sem tamanho de tão grande que é. Afinal, quem são os senhores dos bombeiros, da marinha ou da força aérea para determinarem que a família espera por notícias em casa? Onde já se viu uma coisas destas? Afinal, trata-se do pai dela, das manas e dos manos dela. E do marido da mãe deles. Nem pensar que as duas ficam em casa!
Já quase no fim da rua, a voz de Eugénia troca-lhes as voltas. A gesticular bastante agitada, grita a plenos pulmões: “O pai está vivo, mãe. Acabaram de ligar, mãe. O pai está vivo. Estão todos salvos…” As duas invertem a marcha alvoraçadas. Com as lágrimas a correrem-lhes pelos rostos. Com o coração a pular-lhes no peito. Com o chão a fugir-lhes dos pés, teimosamente.  Tal a urgência de chegarem. Tal a urgência de saberem mais sobre o que aconteceu. Tal a urgência de estarem todos juntos à espera dos que faltam. Tal a vontade de fazerem um bolo para celebrar. O de chocolate, o preferido do “garanhão”. Afinal, ele é um herói. E está de volta à vida deles.

Wednesday, December 14, 2011



Ao chegar das aulas, pressente a má notícia. A poucos metros de casa, o coração aperta-se-lhe com o burburinho que escapa lá de dentro. Porque dois e dois são quatro, não precisa de entrar para saber o que se passa. Tomara estar enganada. Mas dois e dois são mesmo quatro. O tempo está de tempestade. E o pai, mais por necessidade do que por teimosia, foi para o mar. Tomara estar enganada. Antes fosse cinco ou outro número qualquer. Não está preparada para um fado destes. Ninguém está. Ela menos do que alguém. A dor de cada um só cada um é que sabe.
Ao passar a porta depara-se com a mãe, desgrenhada, num pranto. “Oh filha, o pai não voltou do mar…”, a dor abafa-lhe a frase. A mesma dor emudece as perguntas da recém chegada. Uma dor sem tamanho de tão grande que é. Maior ainda porque se junta à dores das pessoas que ama. A mãe sem norte numa ladaínha de ai Jesus. Os manos e as manas num choro aflito à volta da mesa. Faltam os dois mais velhos, que aguardam novidades junto ao cais. Com eles estão também familiares dos outros dois pescadores e responsáveis pela capitania.
“O telefone que não toca. E o meu homem que já não volta…” Inconsolável, Maria do Amparo teme o pior. Não consegue evitar lamento atrás de lamento. Maria do Mar não se entrega. Mantém a esperança viva. Afinal, neste momento, ausência de notícias significa boas notícias. Não há corpo não há morto. “Calma, mãe. Não aconteceu nada. Tenho a certeza. O pai vai voltar. Anda daí, veste um casaco e vamos até à praia saber  mais coisas…”
“A polícia mandou a gente embora, filha. Só deixaram ficar o João José e o Eleutério. Eles vão ligar assim que souberem o que aconteceu.” E prossegue, virando-se para o quadro da última ceia dependurado na parede, em registo desesperado. “Deus pai, não me leves o meu homem. Ai, por tudo o que é mais sagrado, tem piedade desta família. Ai Jesus, o meu homem não...” 

Friday, December 09, 2011

O tempo passa. Sem considerar o que  apanha pelo caminho. A gente nasce, cresce, envelhece. E morre. Maria do Mar também existe dentro do tempo que passa. Não é já a menina do início da história. É uma mulher. Feita daquela menina franzina e de outras que vivem nela. Tem dezanove anos agora. Está a concluir o secundário e trabalha numa loja de pronto a vestir. Quem a viu, quem a vê e quem terá a sorte de vê-la daqui a uns anos! Feito o luto amoroso, o custo de oportunidade é este: uma pessoa mais forte, mais determinada, mais ambiciosa. Afinal de contas, crescer é perder umas coisas e ganhar outras tantas. 
António deixou de estar no horizonte dela. Apesar de ter tentado recuperar o que deitara a perder. De rabinho entre as pernas. Profundamente arrependido. Deveras apaixonado. Mas o tempo passa. E porque o tempo passa, a oportunidade já não lhe pertence. Quando o amor vira desamor não há nada a fazer. Há circunstâncias que não têm volta. Afinal, “o caminho faz-se caminhando.”


Wednesday, December 07, 2011


No dia seguinte, António não vai às aulas. Nem no outro. Nem no outro. Aparece no quinto dia. De mãos dadas com a nova namorada. Maria do Mar não esperava.  Passados quatro dias sem sinal dele. Esperava menos vê-los aos dois. Irritantes de cúmplices. Como se protagonizassem um grande amor. Há pessoas realmente voláteis… Um dia amam muito, muito, muito alguém. Um dia depois amam muito, muito, muito outra pessoa. A chavelha fica pasma com tamanha ousadia. “Como é possível? Há três semanas, o tonto andava aos beijinhos comigo...” E mais pasma fica com a figura da outra. “O que é que ele vê na pindérica da gaja? Parece a mãe!”,  observa para os seus botões, quase chocada. Apesar de serem colegas na disciplina de português, nunca a tinha visto com olhos de ver. Mais velha, excessivamente maquilhada, cheia de maneirismos senhoris, vulgar. Da mágoa à desilusão o caminho está a ser mais curto do que estava à espera. Graças a Deus!


Monday, December 05, 2011

O caminho faz-se caminhando. Disse e muito bem Ortega y Gasset. Em sentido estrito, a caminho do  Liceu, Maria do Mar caminha determinada. Embora de coração ainda a sangrar. O confronto com António está a poucos passos de acontecer. Desde aquele dia que não o vê. Apesar da vontade que tem tido de o procurar. De pedir-lhe explicações. Enfim, de implorar que volte para ela.  Ao invés disso, tem calado a dor. Dentro dela. Dentro de casa. Hoje vai expôr-se pela primeira vez desde aquele dia. Está frágil. Tem os medos à flor da pele. O maior de todos é que ele perceba o quanto ela ainda sofre de amor por ele. O orgulho é uma coisa que Deus nos deu, muito oportuna em ocasiões como esta. É uma espécie de travão de mão para evitar embates emocionais mais duros.
O corredor está cheio de gente. Sobretudo junto às salas de aula. Mas a passar vem apenas uma pessoa no sentido contrário. António. Ainda dizem que não há coincidências! Vem em passos largos que se tornam mais largos e apressados quando a vê. Não estava à espera deste encontro imediato. Maria do Mar fica em sobressalto. Percebe o olhar dele na direcção dela mas passa como se não o conhecesse. Tem as pernas bambas, o coração acelerado e uma vontade quase incontrolável de chorar. Tem também uma grande revolta por sentir o que sente. E outra maior ainda por achar que para ele é como se nada fosse. Isso impede-a de desmanchar-se em lágrimas. “Era o que faltava…” E segue. Aparentemente serena. Tão magoada quanto orgulhosa.
A aula começa e de Kadhafi nem sombra. A aula continua e ele sem aparecer. Acobardou-se. Ela está só de corpo presente. Não escuta uma palavra da lição debitada. Envolta numa espécie de névoa. De olhos colados na porta. À espera que ele entre. Apaixonado de novo.