Monday, February 18, 2008


A fama e o proveito


Parece uma das historiazinhas de “Flagrantes da Vida Real” que costumava ler quando era miúda nas Selecções do Reader’s Digest que o meu pai assinava. Vou de auscultadores a ouvir Dulce Pontes numa vertigem de inexplicável beleza sonora a caminho da estação do Oriente. Estou a passar a cancela de acesso ao metropolitano em plena evasão dos sentidos, quando sou literalmente empurrada para as questões do quotidiano. É alguém que aproveita a minha passagem para entrar também. É um homem ainda jovem apesar do ar gasto e desiludido. Vem mal trajado, traz na mão uma garrafa de vinho de qualidade duvidosa e propaga um odor fétido à sua volta.
Ao precipitar-se sobre mim toca-me nas costas sem intenção, pregando-me um grande susto. Acontece tudo tão de repente que não consigo reprimir o grito. O desconhecido apressa-se numa lenga-lenga de desculpas: “Desculpe lá, menina. Assustei-a? Eu só queria entrar. Entende? Não me leve a mal, por favor…”
Faço que sim com a cabeça, já refeita do pequeno contratempo. A melodia “Amor a Portugal” está a chamar-me de volta. E tenciono prosseguir o caminho sem mais interrupções mas ele continua a explicar-se: “Olhe, ainda no outro dia por causa disto uma velhota começou a gritar que estava a ser assaltada. A mulher não se calava, mesmo depois de perceber que eu só queria passar. Entende? Era toda a gente a olhar para mim de lado. Senti-me mesmo mal, menina. Fiquei tão lixado, tão lixado, que logo a seguir no metro assaltei o marido dela. Já agora, porque não? Assim, tive a fama e o proveito. Ficámos logo conversados.”
Confrontada com o simplismo do argumento, não contive a gargalhada. Apesar de nada legitimar o assalto, por mais enervante que seja - e é - ter fama sem proveito. Por outro lado, duvido muito que tenha sido apenas esse o móbil do crime.