Monday, December 19, 2011




Uma família feliz é um quadro bonito. Uma família feliz depois de um grande desgosto é um quadro enternecedor. Com o pai de volta são e salvo, o ambiente é de festa na casa de Maria do Mar. O chefe de família vem cansado, um pouco desidratado mas grato por estar vivo. E pelo amor que o aguarda. As famílias pobres madeirenses são barulhentas quando estão felizes. Também o são quando estão infelizes. À semelhança das famílias pobres italianas. Quase indiferentes ao estado debilitado do recém chegado, todos querem saber pormenores do que aconteceu. O pai, já em descompressão e com dois ou três copos de vinho bebidos, conta tudo. “Eram ondas de cinco, seis metros ou mais… Nunca tinha visto o mar reinar assim! O Pesquita (barco de pesca) aguentou-se bem mas o Zacarias foi cuspido p’ó mar às piruetas. O gajo teve sorte não se ter partido todo. Vocês não imaginam como ele se agarrou à bóia com toda a força. Coitado, ficou foi roxo de frio. É por isso qu’ele teve qu’ir p’ó hospital. Graças a Deus não é grave. Felizmente, o barco da marinha chegou mesmo a tempo. Já ninguém tinha força. Nem p’ra gritar nem p’ra rezar… ” Enfatiza aqui e ali como, aliás, adora, arrancando dos ouvintes gargalhadas sonoras. Gargalhadas histéricas. Mais pela alegria de o terem de volta do que pelas graçolas que acaba de inventar. A algazarra é tanta que não há quem consiga dormir nas redondezas. Mas ninguém se queixa. Os vizinhos estão, naturalmente, solidários. O garanhão está vivo. É mais do que motivo para celebrar. Um “milagre” tão oportuno. Não tarda nada é Natal. E Natal significa família. Sem tirar nem pôr.

Sunday, December 18, 2011

Esperar por notícias em casa não faz o feitio de Maria do Mar. Em casa, o tempo cresce exponencial. Os segundos parecem minutos. Os minutos parecem horas. Vai até o cais, está decidido. Sem apelo nem agravo. E leva a mãe pelo braço. Mais que não seja, para a sacudir daquela angústia sem tamanho de tão grande que é. Afinal, quem são os senhores dos bombeiros, da marinha ou da força aérea para determinarem que a família espera por notícias em casa? Onde já se viu uma coisas destas? Afinal, trata-se do pai dela, das manas e dos manos dela. E do marido da mãe deles. Nem pensar que as duas ficam em casa!
Já quase no fim da rua, a voz de Eugénia troca-lhes as voltas. A gesticular bastante agitada, grita a plenos pulmões: “O pai está vivo, mãe. Acabaram de ligar, mãe. O pai está vivo. Estão todos salvos…” As duas invertem a marcha alvoraçadas. Com as lágrimas a correrem-lhes pelos rostos. Com o coração a pular-lhes no peito. Com o chão a fugir-lhes dos pés, teimosamente.  Tal a urgência de chegarem. Tal a urgência de saberem mais sobre o que aconteceu. Tal a urgência de estarem todos juntos à espera dos que faltam. Tal a vontade de fazerem um bolo para celebrar. O de chocolate, o preferido do “garanhão”. Afinal, ele é um herói. E está de volta à vida deles.

Wednesday, December 14, 2011



Ao chegar das aulas, pressente a má notícia. A poucos metros de casa, o coração aperta-se-lhe com o burburinho que escapa lá de dentro. Porque dois e dois são quatro, não precisa de entrar para saber o que se passa. Tomara estar enganada. Mas dois e dois são mesmo quatro. O tempo está de tempestade. E o pai, mais por necessidade do que por teimosia, foi para o mar. Tomara estar enganada. Antes fosse cinco ou outro número qualquer. Não está preparada para um fado destes. Ninguém está. Ela menos do que alguém. A dor de cada um só cada um é que sabe.
Ao passar a porta depara-se com a mãe, desgrenhada, num pranto. “Oh filha, o pai não voltou do mar…”, a dor abafa-lhe a frase. A mesma dor emudece as perguntas da recém chegada. Uma dor sem tamanho de tão grande que é. Maior ainda porque se junta à dores das pessoas que ama. A mãe sem norte numa ladaínha de ai Jesus. Os manos e as manas num choro aflito à volta da mesa. Faltam os dois mais velhos, que aguardam novidades junto ao cais. Com eles estão também familiares dos outros dois pescadores e responsáveis pela capitania.
“O telefone que não toca. E o meu homem que já não volta…” Inconsolável, Maria do Amparo teme o pior. Não consegue evitar lamento atrás de lamento. Maria do Mar não se entrega. Mantém a esperança viva. Afinal, neste momento, ausência de notícias significa boas notícias. Não há corpo não há morto. “Calma, mãe. Não aconteceu nada. Tenho a certeza. O pai vai voltar. Anda daí, veste um casaco e vamos até à praia saber  mais coisas…”
“A polícia mandou a gente embora, filha. Só deixaram ficar o João José e o Eleutério. Eles vão ligar assim que souberem o que aconteceu.” E prossegue, virando-se para o quadro da última ceia dependurado na parede, em registo desesperado. “Deus pai, não me leves o meu homem. Ai, por tudo o que é mais sagrado, tem piedade desta família. Ai Jesus, o meu homem não...” 

Friday, December 09, 2011

O tempo passa. Sem considerar o que  apanha pelo caminho. A gente nasce, cresce, envelhece. E morre. Maria do Mar também existe dentro do tempo que passa. Não é já a menina do início da história. É uma mulher. Feita daquela menina franzina e de outras que vivem nela. Tem dezanove anos agora. Está a concluir o secundário e trabalha numa loja de pronto a vestir. Quem a viu, quem a vê e quem terá a sorte de vê-la daqui a uns anos! Feito o luto amoroso, o custo de oportunidade é este: uma pessoa mais forte, mais determinada, mais ambiciosa. Afinal de contas, crescer é perder umas coisas e ganhar outras tantas. 
António deixou de estar no horizonte dela. Apesar de ter tentado recuperar o que deitara a perder. De rabinho entre as pernas. Profundamente arrependido. Deveras apaixonado. Mas o tempo passa. E porque o tempo passa, a oportunidade já não lhe pertence. Quando o amor vira desamor não há nada a fazer. Há circunstâncias que não têm volta. Afinal, “o caminho faz-se caminhando.”


Wednesday, December 07, 2011


No dia seguinte, António não vai às aulas. Nem no outro. Nem no outro. Aparece no quinto dia. De mãos dadas com a nova namorada. Maria do Mar não esperava.  Passados quatro dias sem sinal dele. Esperava menos vê-los aos dois. Irritantes de cúmplices. Como se protagonizassem um grande amor. Há pessoas realmente voláteis… Um dia amam muito, muito, muito alguém. Um dia depois amam muito, muito, muito outra pessoa. A chavelha fica pasma com tamanha ousadia. “Como é possível? Há três semanas, o tonto andava aos beijinhos comigo...” E mais pasma fica com a figura da outra. “O que é que ele vê na pindérica da gaja? Parece a mãe!”,  observa para os seus botões, quase chocada. Apesar de serem colegas na disciplina de português, nunca a tinha visto com olhos de ver. Mais velha, excessivamente maquilhada, cheia de maneirismos senhoris, vulgar. Da mágoa à desilusão o caminho está a ser mais curto do que estava à espera. Graças a Deus!


Monday, December 05, 2011

O caminho faz-se caminhando. Disse e muito bem Ortega y Gasset. Em sentido estrito, a caminho do  Liceu, Maria do Mar caminha determinada. Embora de coração ainda a sangrar. O confronto com António está a poucos passos de acontecer. Desde aquele dia que não o vê. Apesar da vontade que tem tido de o procurar. De pedir-lhe explicações. Enfim, de implorar que volte para ela.  Ao invés disso, tem calado a dor. Dentro dela. Dentro de casa. Hoje vai expôr-se pela primeira vez desde aquele dia. Está frágil. Tem os medos à flor da pele. O maior de todos é que ele perceba o quanto ela ainda sofre de amor por ele. O orgulho é uma coisa que Deus nos deu, muito oportuna em ocasiões como esta. É uma espécie de travão de mão para evitar embates emocionais mais duros.
O corredor está cheio de gente. Sobretudo junto às salas de aula. Mas a passar vem apenas uma pessoa no sentido contrário. António. Ainda dizem que não há coincidências! Vem em passos largos que se tornam mais largos e apressados quando a vê. Não estava à espera deste encontro imediato. Maria do Mar fica em sobressalto. Percebe o olhar dele na direcção dela mas passa como se não o conhecesse. Tem as pernas bambas, o coração acelerado e uma vontade quase incontrolável de chorar. Tem também uma grande revolta por sentir o que sente. E outra maior ainda por achar que para ele é como se nada fosse. Isso impede-a de desmanchar-se em lágrimas. “Era o que faltava…” E segue. Aparentemente serena. Tão magoada quanto orgulhosa.
A aula começa e de Kadhafi nem sombra. A aula continua e ele sem aparecer. Acobardou-se. Ela está só de corpo presente. Não escuta uma palavra da lição debitada. Envolta numa espécie de névoa. De olhos colados na porta. À espera que ele entre. Apaixonado de novo.





Wednesday, November 30, 2011


Têm sido dias difíceis para Maria do Mar. Não sai de casa há quase duas semanas. Apesar da insistência da mãe para retornar às aulas. Incrédula com a separação e ainda com as feridas em carne viva não quer ver ninguém. Não quer explicar aquilo que nem ela compreende. Sabe que a curiosidade das pessoas não se faz de rogada. Que as perguntas e, pior, as opinões hão-de surgir mesmo contra a sua vontade. Não quer ser alvo da conversa alheia. Quer menos ainda reencontrar o António ou vê-lo com a nova namorada. Mas se, por um lado, a ideia a repugna, por outro, é imensa a vontade de ver como ela é. Curiosidade de gaja. E aqui não há qualquer espécie de auto-comiseração. A ideia é mesmo saber quem é a outra, identificar-lhe os defeitos e, no fim de contas, concluir que não vale grande coisa. O processo é meio caminho andado para esquecer o sujeito de tal escolha. 
Por isso e porque a vida continua, Maria do Mar acorda decidida a ir às aulas. Afinal, perdeu o namorado mas não vai perder o ano. Isso é que nem pensar. Eugénia, a mana mais velha, está a ser uma das alavancas da sua auto-estima. Entre conselheira e ouvinte atenta, é um pouco de tudo. Hoje até lhe emprestou um vestido curtinho de cores garridas para levar à escola. É uma aliada e pêras. Como, aliás, toda a família. Porque os garanhões podem não trocar muitos beijos, abraços ou palavras doces mas promovem o carinho, a cumplicidade e o bem estar entre eles.

Monday, November 28, 2011


Maria do Amparo deixa de estar um pouco inquieta para estar muito preocupada. Em casa todos dormem à excepção dela e do filho mais velho. O marido veio cansado e deitou-se cedo. “Graças a Deus. É menos um que s’apoquenta…”, conclui  agradecida pela circunstância.
À quinta-feira,  a filha chega por volta das vinte e três horas. Já com o desconto dos mimos ao namorado. “Se calhar perderam o autocarro. Ou andam os dois nos melos. E eu aqui que não m’aguento dos nervos. Que raios… A que horas vai ela comer?” Maria do Mar tem sempre a mãe à espera. E o jantar, tapado com um guardanapo (não vão as moscas fazer banquete).
Os ponteiros do relógio marcam meia noite e quarenta. E prosseguem o movimento a cada segundo que passa.  Não há preocupação que os retenha. Porque o tempo existe. E vai  existir sempre. Alheado dos contextos que o envolvem.
Sem aguentar de aflição, Maria do Amparo prepara-se para sair à procura da cria. Já de casaco aos ombros, o telefone toca. Corre a atender, com o coração a sair-lhe pela boca. Do outro lado, Maria do Mar. “Mãe…”, sufoca num choro convulsivo.
“Então filha, o que tens? O que foi  c’aconteceu? Tou pr’aqui numa tormenta que só Deus sabe… Estás onde?”
“O Kadhafi acabou comigo, mãe. Arranjou outra… ”, o choro inadvertido não a deixa concluir a frase.
“Tem calma, filha. Tudo tem solução. Só não há remédio pr’à morte.” 
“Ainda estou no Funchal.”
“Nossa senhora nos valha! E agora como é que vens pr’a casa? A esta hora da noite não há autocarros…Onde é que tás?”
“Na Marina. Desculpe mãe, o tempo passou sem dar por isso…”
“Fica ao pé da paragem. O mano vai já ter contigo. Tem calma.” 
Entretido com um filme de acção, João José ainda não sabe que a vai buscar. Alheio às horas, não dá pelo atraso de Maria do Mar. Mas em poucos segundos a mãe põe-no a par do que se passa. Sem vacilar um instante, corre do sofá para a mota no encalce da mana. E segue veloz. A protestar contra o estuporado que a faz sofrer.

Thursday, November 24, 2011

Maria do Mar corre em direcção à avenida marginal, a Avenida das Comunidades Madeirenses, mais conhecida por Avenida do Mar. Nem de propósito. Devastada e torpe de raciocínio fica por ali horas e horas a deambular. Sem noção do tempo que passa. Até não lhe restarem forças e decidir sentar-se na ponta do Cais. A olhar o mar. Quase sem vê-lo. Mas a sentir a pulsação às ondas que beijam a muralha. De cara salgada e coração estilhaçado. “E agora?”, a pergunta surge-lhe vezes sem conta e sem respostas. Agora, nada. Nem aulas, nem autocarro de volta, nem casa. Não quer saber de nada. Agora apenas sabe a dor que sente. A dor que chega a ser física de insuportável. A dor para a qual não tem analgésico. A dor que só o tempo cura. Para ela,  eterna. Porque a dor é eterna quando a sentimos. Como o amor. 
O tempo continua a passar. Nada faz parar os ponteiros dos relógios. Nem a dor maior de todas. O da Sé Catedral marca meia noite e quarenta quando de repente olha para trás. O adiantado das horas desperta-a da comiseração em que se encontra. Toda a dor se faz acompanhar de uma espécie de auto-piedade. “Meu Deus! Tenho de ligar já para casa. Estão todos aflitos com certeza.  E agora, como saio daqui? A esta hora nem tenho autocarro…” Com este monólogo em alta voz, levanta-se num salto à procura de cabine telefónica. Porque a família está alarmada. E a dor que sente pode esperar.

Wednesday, November 23, 2011


António permanece sentado. Sem reacção aparente. Tem vontade de chamá-la de volta e correr atrás. Mas o desalento cola-o à cadeira. Como se tivesse desaprendido de andar. Sente-se desleal, triste, perdido. Pesa-lhe o sofrimento que está a causar. Pesa-lhe mais ainda o vazio que começa a sentir. Afinal está a desmerecer o primeiro amor. O único amor até há meia dúzia de dias. “Se ela não tivesse ficado em casa nada disto estava a acontecer…”, justifica em busca de conforto, referindo-se aos dois dias que Maria do Mar tem febre e falta às aulas.  É sempre mais fácil encontrar um bode expiatório quando o coração (nos) atraiçoa. Os homens são peritos no assunto. 
Voltando aos dias da febre,  os dois combinam que António vai na mesma à escola e tira os apontamentos para não se perderem da matéria. Assim acontece. Mas com uma inesperada nuance: a teia de sedução por parte da colega das aulas de português. Atraída pelo ar rufia de Kadhafi,  Cristina retém-no na sala a pretexto de esclarecer uma dúvida. Senhora  de fortes argumentos, entre os escorridos cabelos oxigenados e os generosos seios a saltarem do decote, convida-o a dar uma volta. Continuando a insistir no pretexto. Inexperiente mas já com ronha, ele percebe que as dúvidas, a existirem, não são da parte dela. Ainda equaciona uma desculpa mas a curiosidade é maior do qualquer outro pensamento. À mercê desta mulher bonita, astuta e com piquinho vulgar, a adrenalina dispara-lhe. De pernas bambas e sem encontrar as palavras adequadas, apenas gesticula em sinal de aprovação. 

Tuesday, November 22, 2011



“Precisamos de falar.” A frase, proferida em tom solene e sem sorriso, tem a força de uma sentença. Nunca o tinha visto assim. “Precisamos de falar! Desde quando avisas que precisamos de falar?”, inquire sem fazer uso das palavras. Alvoraçada. O instinto é a maior certeza que a mulher tem. E o instinto diz-lhe que vem aí a conversa mais difícil da sua vida. De coração angustiado, Maria do Mar congela o olhar nos olhos de António, que se baixam atrapalhados. Instala-se o silêncio. Comprido e com ruídos. Interrogações e exclamações da parte dela. Dúvidas e peso de consciência da parte dele. Agora não há como voltar atrás. Pior do que saber é não saber quando se sabe que alguma coisa se passa. Elementar, meu caro Khadafi. Estão sentados na esplanada junto ao liceu Jaime Moniz. Falta meia hora para a primeira aula do dia. Ele prossegue. “Acho que estou a gostar de outra pessoa… Ainda  gosto de ti mas preciso de um tempo…” Um tempo. A clássica desculpa dos homens, mesmo quando sabem que não há tempo que os valha. Melhor dizendo, que as valha. A chavelha experimenta uma espécie de náusea e, sem saber o que dizer, faz que sim com a cabeça. Deixando escapar duas lágrimas gordas, que lhe caem no colo. Mais duas. Outras duas. Por esta não esperava mesmo. O amor da vida dela já não a quer na vida dele. Ou não sabe se quer. Está a gostar de outra pessoa. Mas que outra pessoa? Como se atreve gostar de alguém que não ela? Como não percebeu nada? Estão sempre juntos. Que raio de brincadeira é esta? Hoje nem é o dia das pêtas. Não, não é. E os olhos comprometidos dele dizem que é verdade. O tempo acabou para os dois. Com a alma contorcida de dor, Maria do Mar sai a correr. Não sabe para onde vai. Tão pouco quer saber. Já nada importa. A aula, entretanto a começar, não tem importância. Estudar não tem importância. Nada de nada importa.  Apenas a dor que sente. A maior das dores que alguma vez sentiu.

Monday, November 21, 2011


Passaram dez meses. O ano lectivo está a poucos dias do fim. O ciclo é já um dado adquirido. Estão a fazer dois em um. Não tarda ingressam no ensino secundário. Ao contrário das expectativas de amigos e familiares. Que eram baixas para os mais crédulos. Quase inexistentes para os desconfiados. Isso também os conserva motivados. A cada dia que passa, a cada teste que fazem, a cada nota que recebem. Afinal são adolescentes em plena idade do contra. Quanto pior, melhor. António ajuda-a nas disciplinas de português, inglês e história. Maria do Mar ajuda-o em matemática, ciências e desenho. Não tem sido fácil. Os up grades implicam trabalho e esforço. De um dia para o outro trocam a inércia pela responsalibidade. A ignorância pelo conhecimento. A rua pela sala de aula. Mas, como diz o povo no alto do seu saber, primeiro estranha-se, depois entranha-se. E se, por um lado, perderam em tempo de ócio, por outro, ganharam em privacidade. A hora de recolher estendeu-se e o mundo deixou de confinar-se à baía de Câmara de Lobos. Entre uma ou outra gazeta, um ou outro feriado, não faltam oportunidades para as escapadelas românticas. O parque de Santa Catarina, um esplêndido jardim com vista sob a enseada do Funchal, é o reduto preferido para passeios a dois e outras intimidades. Continuam apaixonados. E estão a crescer. O futuro configura-se mais nítido. Os sonhos de cada um - com muitos pontos de interseccção -  têm agora pernas mais atléticas para andar. Correr até, se for preciso.

Thursday, November 17, 2011

      Maria do Mar está de volta à escola. Decide quase por arrastamento. A motivação é lírica: estar mais perto do amor. António vai estudar em regime pós-laboral por insistência da irmã. Lúcia é secretária de direcção num organismo público. Quando o pai desaparece (o sentido é  literal visto nunca mais ter aparecido e ninguém saber que destino levou), começa a trabalhar como empregada interna na casa de uma abastada família de médicos. Não há anjo da guarda que a poupe da responsabilidade do sustento familiar. A mãe, iletrada e de coração esmigalhado, é incapaz de o fazer. Cabe então à primogénita, na altura com dezasseis anos, assumir as rédeas. Não é pêra doce mas faz do contratempo uma oportunidade. Com o incentivo dos patrões - e porque tem  planos de vida menos limitados - inscreve-se nas unidades capitalizáveis e conclui o liceu. Hoje é apontada como a betinha do sítio e prepara-se para alugar um apartamento xptz no Funchal a meias com o namorado. Não quer sair, no entanto, sem deixar a casa arrumada. Que é como quem diz, encarrilhar o irmão. Há anos que usa de fortes argumentos para o convencer. Consegue finalmente. As despesas são por conta dela até Kadhafi ter uma idade mais empregável. Fica então decidido. O casalinho de chavelhas retoma os estudos. Vão juntos, frequentam a mesma classe e voltam juntos no penúltimo autocarro. Maria do Mar estranha a responsabilidade e a falta de tempo e liberdade para cirandar pela rua. Ela não sabe mas a seu tempo saberá, são menos os custos que os benefícios do novo desafio.



Monday, November 14, 2011

      Hoje é sábado, dia de limpar a casa na casa da família “garanhão”. Todos os dias se limpa mas ao sábado limpa-se mais. À excepção das crianças, os que estão em casa ajudam na empreitada. Maria do Mar tem por sua conta o quarto que divide com os irmãos mais velhos. Conceição trata do quarto dos mais novos.  Rui está incumbido da sala e do corredor. Eugénia limpa a cozinha. Teresa, a casa de banho. Emanuel varre o quintal e lava-o de mangueira, depois de regar as plantas. A mãe orienta as crianças e prepara o almoço. As limpezas fazem-se quase sempre ao som da rádio. Hoje Maria do Amparo acordou triste, melancólica e com vontade de ouvir Amália. Mesmo a contra gosto dos filhos põe o disco de vinil a tocar e esganiça por cima da voz da fadista. “Foi por vontade de Deus que eu vivo nesta ansiedade, que todos os ais são meus…” Canta para espantar a mágoa que sente. A noite de ontem foi feia à custa de uma troca de palavras feias com o marido. A paciência esgota-se-lhe. É bom homem mas o hábito maldito da bebida quase deita tudo a perder. “Que raio de vício que só serve p’a m’azucrinar a cabeça…”, desabafa entre dentes, quando se perde da letra do fado, ainda a matutar nas ofensas trocadas. Palavras rematadas com violência, apesar de não sentidas. Palavras que puxam palavras num  braço de ferro absurdo. A páginas tantas, a ver quem magoa mais. Ele, por trazer vinho martelado no bucho e estupidez na cabeça. Ela, por trazer amargura no coração de o ver chegar assim a casa. Ainda que seja uma vez por outra.

Saturday, November 12, 2011


      Olham nos olhos um do outro à procura de aquietação. Os dois cúmplices, tímidos, agitados. Trocam um beijo fugaz e poucas palavras. Sentam-se no sofá e numa espécie de reflexo condicionado António liga a televisão. A voz histriónica da Júlia Pinheiro serve o propósito de descomprimir o ambiente. Pinta o silêncio, pelo menos. Hoje mais longo e bastante mais incómodo. Maria do Mar agarra o momento. Afaga-lhe os cabelos e vai à procura de um beijo. Mais dengoso do que o primeiro. As mãos dele envoltam-se na cintura dela e, como se tivessem vontade própria, escalam em direcção aos seios endurecidos. Quebra-se o gelo. Ele despe-a desajeitado. Ela despe-o com a mesmíssima falta de jeito. Sem querer, estão também despidos do atrevimento que os caracteriza. Nenhum ousa olhar o corpo nú do outro. António leva-a pela mão ao quarto minúsculo e à cama minúscula onde se deitam. Inflamados de excitação, roçam os corpos - ainda há pouco de criança - em movimentos frenéticos. Sabendo que tão cedo não gozarão de uma oportunidade destas. E como se quisessem pôr em dia o tempo que estiveram à espera e o tempo que hão-de esperar de novo. Com urgência de chegar ao fim. Porque a primeira vez é quase como se fosse a última. Mas apesar da explícita tensão sexual, os jovens amantes não se esquecem do preservativo e, já pouco intimidados, colocam-no a meias (entre risinhos). O corpo dele volta a juntar-se ao dela. O sexo dele procura o dela. Entra nela, paulatinamente. Puro instinto.  Como o recém nascido encontra o seio materno. António e Maria do Mar encontram-se.

Friday, November 11, 2011



     O dia tão aguardado chega. Kadhafi acorda bem disposto.  Levanta-se a cantarolar e vai certificar se a mãe e o irmão sempre foram à consulta. Apanha-os ainda de saída. Pede um troquinho e despede-se aliviado. Ufa. Mais excitado do que nervoso. Bebe um copo de leite e come uma fatia do bolo que sobrou do aniversário da irmã. Logo de seguida toma duche, faz a barba (que é como quem diz rapa meia dúzia de pêlos a jogar à bisca), penteia os cabelos com as mãos (como é uso e costume), põe os calções azuís e a t-shirt branca. Concluída a produção, sai em direcção à farmácia. Agora sim, está nervoso. E abarrotado de pudor. É a sua estreia como homem. E tem vergonha de pedir os preservativos. Já os devia ter comprado no hipermercado. Deixou passar a oportunidade e agora não tem tempo de lá ir. Não há como dar a volta à coisa. São os dois muito jovens e nem um nem outro tem onde cair morto. Uma gravidez está fora de questão. Completamente. Por isso tem mais é que ganhar coragem e comprar os preservativos. Assim é. Na farmácia estão apenas dois desconhecidos e a operação corre com normalidade.
      De volta a casa, outro embaraço se lhe ocorre. E se no momento nada acontece? Enfim, isto de fazer sexo tem muito que se diga. Sobretudo, se é a primeira vez. Inexperiência mais pudor mais receio é uma soma alta. Ainda que a contrabalançar com paixão mais desejo mais curiosidade. A divagar neste caldo de emoções, a campaínha toca. Maria do Mar acaba de chegar. 

Thursday, November 10, 2011


     O dia tão aguardado chega. Maria do Mar desperta em sobressalto. A noite foi agitada. Intermitente. A dormir e a acordar de hora a hora. Mais nervosa do que excitada, levanta-se e trata logo da questão higiénica. Com um cuidado particular, hoje. Toma banho de imersão com os sais que a tia trouxe da Inglaterra. Rapa debaixo dos braços com a lâmina de um dos irmãos. Apara os virilhas com a tesoura da mãe. Põe o creme de corpo da irmã mais velha (que estava bem refundido no armário). Veste a saia e o top da Berska que ganhou no Natal. Escova os dentes e os cabelos. E planeia saltar o pequeno almoço quando Maria do Amparo lhe prepara duas torradas e um sumo de laranja. Come a contra gosto “mas é melhor assim”, admite. Escova novamente os dentes, põe after shave do pai na nuca (porque quem não tem cão, caça com gato, já dizia a avó), dá um beijo à mãe e sai porta fora. Vai de coração aos pulos  à descoberta do amor físico. Leva dúvidas, receios e uma grande curiosidade.
  


Tuesday, November 08, 2011


      Para sempre não será certamente. O primeiro amor nunca é para sempre. Jamais se esquece. Mas não é para  sempre. Circunstância a que Maria do Mar e António estão alheios. Para eles, o amor é eterno. Ponto final. E ai de quem disser o contrário. O namoro segue de pedra e cal. A paixão expande a cada dia que amanhece. Deixa de haver espaço para o mundo à volta. Os dois bastam-se. Ora no sítio dela. Ora no sítio dele. Com a benção das famílias. E alguma vigilância. Faz parte. Passam as manhãs e as tardes juntos. Só não passam as noites porque não estão autorizados. Somam-se os planos de futuro, as cenas de ciúme, os amúos, as pazes, a vontade de se descobrirem sexualmente. Uma pequena ousadia aqui, outra ali e não mais do que isso por falta de ocasião. Que não faz só o ladrão. Faz também os amantes. Sempre com gente por perto, os dois não têm remédio senão refrear os ímpetos. Até que a oportunidade lhes bata à porta. Kadhafi, o mais desesperado, conta tornear o assunto em breve. O irmão tem consulta de oftamologia no Funchal e vai com a mãe. A irmã trabalha das nove às cinco e o pai há anos que deixou de dar sinais de vida.
      Saíu um dia sem adeus nem até logo. Não voltou mais. Não se sabe ao certo o que aconteceu. Fala-se que terá caído ao mar tais os pifos que apanhava. Fala-se que teria uma amante e com ela emigrou. Fala-se que o terão morto num ajuste de contas. Os rumores por estas bandas são pródigos. Certo, certo é que não voltou. Deixou a mulher com três filhos nos braços e à mercê do rendimento mínimo.
  



  


Sunday, November 06, 2011


      Porque a dormir o tempo parece passar depressa, vai para a cama cedo. Logo depois do jantar. Avisa as manas e os manos que  partilham o quarto com ela para não a acordarem quando se forem deitar. Amanhã é um dia importante. É o seu primeiro encontro. Não combinou a hora mas a seguir ao pequeno almoço parece razoável. Como se houvesse razoabilidade no amor. Adormece a pensar nele.  Acorda com o mesmo pensamento. Pelo meio, sonha com ele. O coração tem destas coisas. Levanta-se a cantarolar, toma um duche rápido, ignora o pão com manteiga e deixa o café com leite a meio. Tal a urgência de sair. Tal a urgência de chegar.
      No largo do coreto, não há vivalma à excepção de dois taxistas e um velhote que passa. Vai até o banco da ponta de lá e fica à espreita, de pescoço esticado. Passam quinze minutos. Uma eternidade, portanto. Já impaciente, vê ao fundo o irmão dele mais novo. Vem a correr. Vem de papelinho na mão. “Estou no beco á tua espera.”, diz o recado que traz um erro ortográfico e dois corações rabiscados, um sobreposto no outro. E se as pulsações dela estavam já aceleradas, agora então seguem velozes. Ao ritmo da corrida para os lados dele. Ao alcançar o beco, dá com o Kadhafi a meio caminho. Sente-se estranha. As pernas tremem-lhe tanto que receia andar de forma ridícula. Ele sente o mesmo. O mesmo receio. O mesmo tremor. A mesma velocidade nas pulsações. Porque a descoberta do amor é um decalque. Já perto um do outro sorriem tímidos, apaixonados, felizes. E o momento pede um beijo. O primeiro beijo dela. O primeiro beijo dele. Uma explosão de emoções. O calor no rosto. O arrepio na nuca. A náusea no estômago. E a vontade de ficar assim. Para sempre.


Saturday, November 05, 2011



     Albertina, a mãe do rapaz, vem à porta. Ao deparar-se com a filha do garanhão, não disfarça o espanto. “O que será que a pineca quer?”, questiona-se esboçando um sorriso tão forçado quanto desdentado. “Desculpe, boa tarde, venho saber do Kadhafi, desculpe, do António… Tem andado desaparecido nos últimos dias…”, justifica. Mais medrosa do que vinha, perante a figura horrenda da mulher. Mas logo por detrás daquele rosto maltratado pela vida, surge o seu mais que tudo. Lindo. Despenteado. Corado, graças à  febre e à visita surpresa. “Tenho estado com gripe…”, explica quase tão acabrunhado como ela mas sem perder o sorriso malandro. A mãe - rude, ignorante mas nada parva - dá meia volta e recolhe-se. Percebe que está ali a mais. 
     Os dois ficam de olhar parado um no outro. Sem palavras. E sem necessidade delas. Os olhos falam o que é importante. As pulsações aceleram atarantadas. A vontade de rir é imensa. Quase tão grande como a felicidade que sentem. Foram apanhados desprevenidos pela piada do amor. Ao mesmo tempo. Soltam uma gargalhada. Ao mesmo tempo. O rosto dela está corado como o dele. E não é de febre.
     O tempo passa a correr. O dia faz-se escuro sem pedir licença. Antes que a família venha no seu encalce, Maria do Mar despede-se apressada: “Vou-me embora. Amanhã vais ao largo?” Ele diz que sim e dá-lhe a mão apertando a dela com força. Ela desprende-se, tímida de novo. Sorri sem jeito e corre beco fora. Vai feliz. Vai apaixonada.

Friday, November 04, 2011


      No beco do António, nem sombra dele. “Que coisa! Onde é que se meteu o gajo?”, indaga a pequena já bastante arreliada. De volta ao centro da vila, passa pela praia de novo. Nada dele. Contorna o orgulho e pergunta aos amigos que encolhem os ombros. Desconhecem também o seu paradeiro. De repente, é como se tudo conspirasse contra ela e o amor que lhe cresce a galope no peito.  Não entende onde “diacho” se meteu Khadafi. Por coincidência ou não,  ontem à noite viu na televisão o homónino dele, o verdadeiro por sinal, morto com um tiro na cabeça. Passaram a imagem do ditador vezes sem conta. “Coitado…” conclui, impressionada com tamanha bandeira de desgraça. Apesar de ignorar o contexto político. O pensamento traz-lhe arrepios de mau pressentimento e só lhe apetece chorar.
      Já de regresso a casa, muda de ideias e inverte a marcha. Vai outra vez para as bandas do “russo” lindo. Não sossega enquanto não souber dele. No caminho convence-se de coragem para bater-lhe à porta. Tem vergonha mas não aguenta  prolongar esta inquietação desatinada. De repente são tantas  as emoções que perde o controlo da coisa. Está mais frágil do que alguma vez. Isso irrita-a bastante. Até hoje de manhã era livre. Livre. Livre.

Tuesday, November 01, 2011



     Maria do Mar acorda a pensar no António. Sente-lhe a falta. Há três ou quatro dias que não o vê. “Logo, logo vou ter com ele”, decide em tom marotinho. Deve andar pela praia. Quase de certeza. Não sabe bem o que se passa mas estar apaixonada é uma forte possibilidade. Só de pensar o coração quase lhe salta do tórax. Levanta-se e corre a tomar o pequeno almoço. Não há tempo a perder quando o amor dá sinais. Já dizia o poeta “é urgente e fundamental”. Lava a cara, apanha o cabelo num rabo de cavalo, põe o creme da mana mais velha, refundido na gaveta, e corre para o calhau na expectativa de o ver. Estão os amigos, ele não. Fica por ali a passear junto à babujinha. A olhar desesperada para todos os lados. Quase o clona nos rapazes alourados que vê passar. E até nos menos alourados. Porque o coração vê mal com os olhos… 
    Não consegue ficar por ali. O sol está a agoniá-la. Julga ela ser o sol, pouco ou nada habituada à vertigem  do amor. Sai da praia a correr até os lados da casa dele. A vontade é de chorar. Quando o vir, dá-lhe um beijo. Como ele tantas vezes pede. Tem a certeza que não passa de hoje. Apesar de não saber como se faz. “O nariz deve atrapalhar bastante. E como é com a língua?” Receios que agora parecem vagos. Agora que sabe mais do que nunca o que é uma pessoa importante. Agora que tem as pulsações descontroladas. Agora que dava tudo para o ter perto...

Sunday, October 30, 2011


      Maria do Amparo em tempos foi bonita. Agora é apenas uma mulher envelhecida antes da hora. Tem quarenta e dois anos e o regaço cheio de sonhos que ficaram para trás. Um deles era emigrar. Como fez o irmão que partiu há vinte anos para a Suiça e hoje vive bem. Bem bem não será. Mas bastante melhor do que ela. Esposa, mãe, dona de casa. É o que é. Ponto. Quase se esquece de ser mulher no que a condição tem beleza e sensualidade. Universo pequeno numa vida de pequena importância. Pequena de quase todos os ângulos. Embora descomunal para o homem que ama há tanto tempo que já não sabe quanto. Descomunal para a catrafada de filhos que pariu e cuida da forma que aprendeu.
       Filha de agricultores, Maria do Amparo tem a quarta classe antiga e alguma ambição. Teve-a mais quando era gaiata. Mas vem a esmorecer a cada ano que passa, a cada filho que nasce, a cada conta que chega. Porque a vida nem sempre se compadece dos sonhos de quem os tem. Ainda assim, embala a esperança de ganhar o euromilhões. Quase todas as semanas esgravata os bolsos do marido à procura de trocos para registar o boletim. “Quem sabe não é desta? E sempre é menos um copo ou dois que toma…”, aquieta-se do pequeno furto. A chave é a data dos aniversários dos filhos. Cresce à medida que um deles nasce. Este é o seu segredo. Guardado há anos numa espécie de religião. Como quem vai à missa aos domingos

Friday, October 28, 2011



      
      A mãe não insiste mas sabe que a história não é esta. Sabe porque todas as mães do mundo sabem sempre quando os filhos omitem ou dizem “menos verdades”. O coração das mães, para além de duas aurículas e dois ventrículos, tem um detector de mentiras para as conversas dos filhos. Maria do Amparo faz de conta que acredita e volta ao ferro de engomar. Mas fica desassossegada. E enquanto passa uma, outra e outra peça de roupa continua a cismar. Pressente mais ou menos o que terá acontecido. Já lhe chegaram aos ouvidos histórias daquelas. Algumas com desfechos menos felizes. A partir de agora vai estar mais vigilante. Não pode consentir que nada de mal aconteça às suas crias.
      Por ora chega de passeios. Assim decide a “chavelha” de olhos cinzentos, ora verdes, ora azuis. Consoante o céu, o mar e o vento que sopra do norte de África. Fica por casa, até porque daqui a nada é hora de jantar. Vai até o quarto dos pais onde a mana mais nova acordou e não pára de choramingar. “Ainda não é fome, comeu mesmo há pouco”, explica a mãe. Se calhar teve um pesadelo ou está simplesmente a fazer uso da única linguagem que domina. Mas mal percebe que vai ter colinho, o rosto da bebé ilumina-se. O choro cede lugar a soluços entecortados com  gargalhadas excitadas. Vai ter colo. E com direito a balanço. Por outro lado, vai ser espremida até a exaustão. Até Maria do Mar saciar o amor que lhe tem com beijos e “queridas”. Ou até a pequenina voltar a dar sinais de choro. Que é o mais provável.

Thursday, October 27, 2011




     A vontade de comer o gelado não é assim tanta, conclui Maria do Mar. Sobretudo depois de a dividir com a repulsa por aquele desconhecido. E, sem querer saber se ele é ou não uma pessoa importante, levanta-se tão de repente quanto se sentou. E dá-lhe com a mão no gelado, fazendo-o cair. Podia apanhá-lo entretanto, tal a falta de reacção do “maldito do velho”, mas prefere deixá-lo a derreter-se no chão. Enquanto isso corre  com todas as forças que consegue reunir, apavorada com a ideia de ser seguida. Vai de pernas a tremer e a rir descompassadamente. Histriónica de tão nervosa, mesmo sabendo que o dinamarquês ficara para trás. Vai no entanto aliviada por ter percebido a tempo que o gelado predilecto ia saber-lhe amargo. 
      De volta a casa, vai ao encontro da mãe. Que passa a ferro uma das muitas peças empilhadas e à espera de vez no cesto de vime. Segunda-feira é o dia de engomar. Sem proferir palavra abraça-a forte e, sem querer, desata num choro convulsivo. Para espanto de uma e outra. “O que andadaste a aprontar?”, indaga a progenitora, tentando disfarçar o zelo e a falta de jeito de quem abraça vezes sem conta com o coração e raramente com os braços. Maria do Amparo - o nome assenta bem no contexto - cala as perguntas que lhe ocorrem. Aguarda em silêncio que a filha acalme e explique o que se passa. De pouco serve o  compasso de espera. Refeita do susto e do nojo, a jovem desfaz o abraço, limpa o rosto e dá a cena por encerrada “Não é nada. Assustei-me com um velho com cara de mau que vi lá fora.” Nada mais acrescenta. Sabe que ao falar pode comprometer a liberdade. Sabe agora também que confiar em estranhos pode custar-lhe outros valores.

Wednesday, October 26, 2011

     
      Jens regressa de um almoço de espetada à madeirense bem regado por um tinto encorpado. O torpor faz com que seja menos cuidadoso do que é habitual. Sem tirar os olhos dos olhos de Maria do Mar, afasta-lhe os cabelos e pergunta-lhe “Do you want ice-cream?”, seguro do objectivo a que se propõe. Ela desvia o olhar, sabendo por intuição que os olhos que fixam os seus não são de fiar. Mesmo assim não resiste a abanar com a cabeça que sim. Não foi preciso estudar mais para perceber que ele está a oferecer-lhe um gelado. Ice-cream, cake e cold drink são palavras que conhece bem mesmo sem falar inglês e às quais raramente resiste. Em casa, as guloseimas são poucas. Uma ou duas fatias de bolo pelos aniversários, as malassadas no Carnaval e os pedaços de bolo de mel no Natal.
      “É só um gelado e o velho tem ar de ser uma pessoa importante…”, pensa para os botões que não tem à laia de conforto.  Entram no café mais próximo. Vai directa à arca frigorífica com uma certeza “É escolher e bazar”. Não contava com a astúcia do dinamarquês, que segura o magnum de amêndoas depois de o pagar. E sai com o gelado na mão rumo a um dos bancos do largo principal. Ela segue-o, intrigada e não menos gulosa. Sentam-se e começa uma espécie de esgrima entre duas forças desiguais. “Ice cream, plis”, suplica a pequena “chavelha” no melhor inglês que consegue articular. O interlocutor, enlevado por ela e abstraído do mundo à volta, ao invés de ceder, exige “You give me a kiss, then I’ll give you the ice-cream.” E quase ao mesmo tempo, pousa-lhe a mão na perna com requintes de ordinário.
      

Tuesday, October 25, 2011


      O dia amanheceu feio sob um céu escuro e ameaçador. O mar prenuncia forte tempestade. Por ora, apenas agitado com ondas espumantes de três e quarto metros. Maria do Mar sai quase à socapa, após intensa ladaínha de avisos. A mãe não a quer na rua em dias assim. “Nem te atrevas a chegar perto da praia ou do cais”, adverte-a com um ror de histórias de pessoas e automóveis arrastados pelas vagas impiedosas. Ela não tem medo das ondas. Prefere-as até revoltas. Mas por respeito hoje fica pelo centro da vila. O passeio não tem a mesma graça mas sempre é melhor do que ficar em casa. 
     Assim que apanha o pé na rua, corre desenfreada. Antes que a chamem de volta. É quando esbarra com Jens, turista dinamarquês de meia idade. Meia idade é eufemismo para idoso, pois passa à vontade dos sessenta e cinco anos. O bem sucedido empresário encanta-se de pronto com a fedelha de Câmara de Lobos. Aquele, desde que se entende por adulto, faz uso e abuso da inclinação por jovens imberbes. O desvio  influencia-lhe a escolha dos destinos de férias. Da Ásia à América Latina, passando por África, já pouco lhe falta explorar. É uma espécie de ave de rapina atenta às presas que encaixem nos seus caprichos. Sem juízo nem remorso.

Monday, October 24, 2011


     Os três rapazes mais velhos já trabalham. Um deles, ainda menor, acompanha o pai na azáfama da pesca. Os outros estão nas obras. No fim do mês contribuem para as contas da casa consoante a percentagem calculada pelo chefe de família. Ainda lhes sobra para os charros. Por aquelas bandas é corriqueiro. Os mais velhos dão no tinto e na aguardente, os mais novos optam pelo chamon. Cada um com a sua moca. Sem interferências de parte a parte. Há conhecimento tácito do assunto mas pouca ou nenhuma verbalização. O problema é quando o haxixe é trampolim para parvoíces mais sérias. São  muitos os jovens da vila a cair que nem tordos na tentação da heroína. Porque a ignorância se mascara de coragem e, depois, é tarde para voltar atrás.
      Felizmente “os garanhinhos” - filhos do garanhão - estão fora do circuito da pesada. Mais por vaidade do que por outro motivo. Não querem arriscar um corpo mirrado. Preferem frequentar o ginásio de improviso na garagem do vizinho e ver crescer o tronco a cada semana que passa. Os pesos e as barras de ferro são garante do sucesso com as miúdas das redondezas. A escolha é estética, não ética. Pouco importa a motivação desde que os mantenha longe do mau caminho.


Saturday, October 22, 2011

   O pai é pescador. E também pedreiro. Conhecido por Joaquim “o garanhão” pelo número de filhos amassados. É um homem rude. E de fisionomia enxovalhada, graças à corrosão do sal e do sol. Aparenta mais quinze ou vinte anos do que os que tem. Tosco mas de coração cheio de amor pela família que cresce a cada ano que passa. Para paradoxal alegria e desgosto que só o pobre conhece. Trabalhador esforçado, apesar das frequentes distrações pelas tascas da redondeza onde busca força anímica para alternar a faina do mar com a construção civil. A vida é que dita as regras deste jogo duro. São muitas as bocas para alimentar. E a fome não pode entrar pela porta. Não vá o amor sair pela janela. O ditado popular repetido vezes sem conta pela mãe ficou-lhe na memória. Talvez por isso tem no trabalho a maior benção. 
E sempre que os rendimentos escasseiam, porque o mar está ruím ou o volume de obras abranda, o medo toma-lhe conta dos nervos. Até na cama, onde o sono lhe foge, faz contas de somar e, principalmente, de subtrair. Para que nada falte em casa. Nada que é como quem diz o absolutamente necessário. Água, luz, gaz, comida na mesa. E o susbstrato para a alma num copo de vidro. Um não. Três, quatro ou cinco porque à falta de outros entretenimentos o vinho a martelo serve na perfeição. Entorpece os sentidos e aligeira as preocupações, ainda que por umas horas. Algumas vezes, poucas, chega a casa tão toldado que segue directo para a cama. Mas quase sempre vem com vontade de asneirar, carente de atenção. E sabe bem como consegui-la. Junta a prole à volta da mesa, e num discurso teatral, recorda o tempo de menino. As histórias são sempre as mesmas, com mais ou menos ênfase consoante a imaginação e a paciência. São quadros de pobreza. Como a narrativa das refeições de papas de milho acompanhadas de um rabo de bacalhau crú. O dito era pendurado sobre a mesa para que o cheiro chegasse a todos e desse a ilusão de conduto. 
Fica confortado com as gargalhadas que arranca dos filhos. De todas, sobressaem as da Maria do Mar. É tal a sonoridade que a mãe costuma avisá-la: "a rir assim qualquer dia derretes, filha".



        (...) Continua

Thursday, October 20, 2011

     António é uma endiabrada tentação. O rapaz tem a pele morena e o cabelo louro, queimado pelo sol.  Parece uma estrela de cinema. Há quem o compare ao mítico James Dean, embora tanto ele quanto ela ignorem quem seja. Maria do Mar anda desassossegada. Quando se é adolescente as hormonas não se compadecem. Mas tem refreado o desejo. Anda a guardar-se para “uma pessoa importante”. Embora não faça ideia do que é uma pessoa importante.
Desde cedo que a mãe lhe diz estar predestinada a uma vida diferente: "Oh filha, presta atenção ao que te digo: tu vais ser muito feliz. Só tens de ficar longe destes rapazes sem futuro. Um dia vai aparecer uma pessoa importante. E vai levar-te daqui para fora. Mas tens de ter juizinho, querida. Só te podes entregar a essa pessoa. Ouve a mãe que só quer o melhor para ti." Não precisa de mais explicações. Entende a mensagem. Soa a música aos seus ouvidos pouco habituados a palavras doces. Não por falta de afecto. Mas por contenção e pudor de uma família que ama sem fazer alarde. Talvez por falta de jeito. Ninguém lhes ensinou a importância dos mimos. Já com os animais é diferente. Talvez por ser mais fácil contornar a vergonha de ser dócil. Que confirme o rafeiro descoberto há nove anos pelo pai e adoptado de pronto pelo clã. Não há dia que não lhe passem a mão pelo pêlo.


       (...) Continua

No seu minúsculo universo, o conhecimento tem ínfima importância. Sabe o suficiente para perceber as histórias que andam de mão em mão lá por casa. Que leu e releu dezenas de vezes em silêncio, tal o embaraço de soletrar mal as palavras que mal conhece. 
Maria do Mar prefere perder-se no mar sem horizonte. E sempre que avista um navio nele viaja para os destinos longínquos da sua imaginação. Por ali fica horas a fio a cismar. Até a mãe chamar por ela. Porque é preciso ajudar nas tarefas de casa, almoçar ou apenas recolher quando a noite a chega. 
Volta logo depois ou no dia seguinte. Descalça, desgrenhada e muitas vezes faminta. Não com fome mas com falta das vitaminas e sais minerais que o seu organismo ainda mal conhece. O que não a impede de correr e saltitar por entre as rochas. Brinca com pequenos calhaus à falta de barbies e jogos electrónicos. Calcorreia a praia de lés a lés à procura nem ela sabe do quê. Quase sempre só. 
Uma vez ou outra, troca cumplicidades com os rapazes da vizinhança. Coisas inocentes, apesar do já manifesto fervilhar de sexualidade. E das investidas marotas de quase todos. Do António em especial. O único que a faz sentir um misto de cócegas e arrepios na nuca e no estômago. A ele, e só a ele, exibe a minúscula cicatriz que ficou da operação à apendicite aguda. Uma vez ou outra, mostra um pouco mais. Os pequenos seios arrebitados e até mesmo a intimidade mais recôndita, guardada por um pequeno triângulo ainda pouco definido. 


Continua (...)

Wednesday, October 19, 2011

     A baía de Câmara de Lobos é o berço que a embala desde gaiata. Com a pequena enseada de barquinhos de pesca de duas ou três cores por cenário. E o cheiro a mar que muda consoante os fenómenos naturais e outros menos ecológicos. Por ali se entretém quase todas as horas da sua insiginificante existência. Foi pouco à escola. Concluíu o ciclo básico. Os irmãos também. Os que estão ou já passaram pela escolaridade obrigatória. Quanto aos mais novos, o futuro talvez reserve surpresas menos boas. Logo se vê, conjectura o pai preocupado com a crescente austeridade que entra pelas casas pobres adentro. Estudar é para quem pode, conclui. Como quem diz que o que não tem remédio remediado está. Como no tempo dos nossos avós.
     Na verdade, Maria do Mar vive feliz sem escola. Não lhe sente a falta. Era sinónimo de vergonha. Os outros meninos e meninas tinham sapatos e mochilas. Ela ia descalça ou mal calçada. E levava o caderno e o livro de leitura num saco de pano costurado às três pancadas pela mana mais velha. Com o lápis, a borracha e o afia a  boiar fora do estojo em formato de joaninha que nunca chegou a ter. Apesar do amor platónico que por ele nutria quando escapava para a secção escolar nas idas mensais ao hipermercado. 


       (...) Continua amanhã

Tuesday, October 18, 2011




       Maria do Mar. Este será o seu nome se não me lembrar entretanto do verdadeiro ou de outro mais  apropriado. Menina e moça vive em casa dos pais a sonhar conhecer mundo fora. Nasceu e tem crescido no seio de uma família pobre. E numerosa. Como são quase todas as famílias pobres. É uma das do meio de catorze irmãs e irmãos. Em número tão extenso é difícil dizer se faz parte do grupo dos mais novos ou mais velhos.
       Maria do Mar tem quinze anos, os olhos da cor do mar em dias de tempestade e o sorriso mais desconcertante que alguma vez se viu por aquelas bandas. Abre-se num descaramento tão puro que desarma os atrevidos. Esboço de sensualidade num corpo ainda de criança. Aparenta nada mais que doze anos. Come pouco e mal. Peixe miúdo que o pai traz do mar. O graúdo vende na praça pois nem só de peixe vive o homem e a sua prole. E come papas de milho com couve picada que a mãe mexe vagarosamente de colher de pau. Uma ou outra vez bebe brisa maracujá ou coca-cola, oferta de algum turista simpático ou apenas mal intencionado. Franzina, mal nutrida, maltrapilha. No entanto, doce e irresistível. 
       
       (...) Continua amanhã. 

Tuesday, October 11, 2011

Nada acontece por acaso. Há sempre factos a desencadearem outros. A inevitável relação causa-efeito. Há duas semanas, uma jovem que conheço perdeu a vida num acidente estúpido. Como, aliás, são sempre estúpidos os acidentes. Foi uma grande perda para as pessoas que gostam dela. E são muitas.
Nunca fomos íntimas. Mas sou uma dessas pessoas. Gosto dela. Leve, educada, atenciosa, querida e muito bonita. E nem tem 30 anos ainda. Estou a falar no presente do indicativo de propósito. Ela deixou-nos mas continua a ser amada. O pretérito saberia a desrespeito. 
Conto-vos isto à laia de preâmbulo. Para explicar  sobretudo como a morte desta jovem precipitou algumas decisões na minha vida. De forma inadvertida, claro. Alertou-me para a urgência de ser feliz. Admitir que não era doeu muito. Tanto que a partir daí foi tudo mais fácil. Comecei por reconhecer a inércia dos meus dias. Decidi, então, mandá-la às urtigas. Fi-lo num estalar de dedos. Sair do “conforto”, ainda  que aparente, é desconfortável. De maneira que o melhor é fazê-lo da forma mais rápida possível. Assim não há tempo para arrependimentos. Isto de dar um passo à frente e dois para trás, ou vice-versa, não é para mim.
Hoje “é o primeiro dia do resto da minha vida”. Falta-me perspectiva para avaliar o impacto da minha decisão. Para já, tenho o enorme desejo de superar-me e experienciar novos desafios. Só posso prometer uma entrega de cabeça e alma. E correr atrás de ser feliz. 

Tuesday, September 27, 2011

Quando te abracei esta noite era um abraço que queria de volta. Por cima e mais forte do abraço que te dei. Com a garantia de consolo absoluto “estou contigo, não tenhas medo.” Era esse o abraço que procurava. Quase com a mesma sede de quem não bebe água há dias e dias. Esse abraço que só tu podes dar. Capaz de ridicularizar as dúvidas e os medos que trago.

Não contava com as palmadinhas condescendentes. Ao jeito das que dava a minha avô quando ainda a tinha por perto. Como se dissesse “tem calma, filha. Já passa.” Duas ou três palmadinhas. Tão confortantes outros tempos. Tão fora de contexto esta noite. Teria preferido os teus braços à volta de mim. Abraçando os meus à volta de ti.

Wednesday, September 21, 2011



Quem tem boca…

O dia foi intenso. Sendo que intenso é um eufemismo de esgotante. Dois castings na agência de manhã, reunião na Plural depois do almoço e, já ao final da tarde,  casting para o Portugal Fashion. Dezenas de manequins e outras dezenas de aspirantes no burburinho próprio da idade. A inquietação, o corre-corre, o despe e veste, as perguntas pertinentes e as desnecessárias, as risadinhas, os beijinhos e os abraços…
No caminho de volta a casa, trago a convicção de missão cumprida.  Trago  também cansaço como se tivesse feito três aulas de rpm seguidas. Na estação da Baixa Chiado, deparo-me com um corredor mais cheio do que é habitual. Talvez seja dia de futebol. Talvez o metro esteja atrasado por falha técnica. Talvez apenas mais pessoas tenham decidido passear por estes lados. Seja como for, descubro um espaço vago no assento. “Vem mesmo a calhar.”, regozijo-me. A espera do metro, apesar de curta, faz-se melhor sentada. Sobretudo com a quebra de vitalidade que trago. Corro no encalce. Mas antes de me “espojar”, indago a senhora do lado, que tem à vontade  setenta e cinco anos.
“Quer sentar-se?”
“Eu não, fía. Amanhã no avião temo muito tempo pá sentá.”
É brasileira. Está acompanhada do marido. É o último dia de férias deste lado do Atlântico.
-“Gostaram de Lisboa?”
-“Góstamo muito. A genti ficou conhecendo mais que Lisboa. Andamo viajando pela península toda. Fizemo Lisboa, Évora, Faro, Murcia, Barcelona, Madrid, Porto e de novo Lisboa.”
-“Foi um passeio e pêras! Viajaram como?
-Andamo de avião, ônibus, trem, metro e também a pé. Uma maravia. E sem falá esponhóu. Mas quem tem boca vai na Roma, fia.”
- E hoje, aproveitam mais um pouco?”
-“Já chega. Hoje é jantá, aprontar as mala e discansá. Estamo de férias tem mais de um mês, fia." 
Casal encantador. A transbordar jovialidade. Em confronto, o cansaço que trago sente-se envergonhado.

Thursday, September 15, 2011

A modos que me sinto vagamente perdida. Não sei se é por conta da crise dos 40 ou da crise económica. Talvez muito por culpa de ambas. E um pouco de outras tantas. Crises é o que mais abunda por entre as nossas vidas. Refilam como as ervas daninhas.
As crises e as oportunidades. Claro. Tem tudo a ver com os olhos que vemos. O olhar é essencial. O ângulo também é importante. Talvez até mais do que aquilo que se vê.
Hoje acordei com os olhos embaciados. Talvez porque o Sol se envergonhou por detrás de uma nuvem imensa. Talvez porque a porta se encostou. Ao invés de estar aberta de par em par, como eu gosto. Talvez porque os sonhos - de que não me lembro - me atazanaram o espírito pela noite fora. Talvez porque ao acordar não estavas no lugar ao lado do meu.
Com o passar das horas passou o desânimo. O lugar da crise foi arrebatado pela oportunidade. O Sol, num jogo do gato e do rato, foi espreitando à laia de brincadeira. A porta escancarou-se. Com o teu sorriso por detrás dela. Os meus olhos brilharam humedecidos. E gratos de felicidade.

Friday, September 02, 2011

Com TPM


Estou a precisar de estar comigo.
Apenas comigo.

Sem troca de palavras.
Sem ruído.
Sem concessões.
Ser senhora do tempo e do espaço.
Apenas comigo.
Para então ter vontade de estar contigo.


Sem TPM


Sem ti nada sabe ao mesmo.
O dia é um enfado.
A noite um enfado maior.
O jantar é mecânico.
E a cama perde o cheiro.
O tempo e o espaço adensam o vazio.
Apenas comigo não tem graça.
Só faz sentido contigo.

Thursday, August 04, 2011

A Beatriz tem três anos. É filha dos meus amigos Sandra e Emanuel. É linda, astuta e mais teatral do que algumas actrizes de conservatório. Sedutora o mais possível, é senhora de observações tão engraçadas quanto pertinentes. Pelas características que enunciei e outras que agora me escapam, a Beatriz é muitas vezes protagonista das nossas conversas.

Ainda ontem, na praia, voltou a dar o ar da sua graça. Passou a tarde em grandes diálogos com o avô. Este, sem resistir ao charme da neta, volta e meia deixava escapar uma gargalhada. Ao vê-lo contrair e relaxar o estômago no exercício de plena risada, a miúda indaga, bastante ciente da piada que tem: “Estás a fazer dança do ventre, avô?”
Não sei onde se inspirou a Beatriz. Mas o avô, apesar da falta de habilidade, continuou a ensaiar para o próximo vídeo de Shakira.

Monday, July 25, 2011

A dor

Dói-me tanto esta dor
Vermelha
Física
Desatinada
A dor que fala
Do vazio que há em mim
Um vazio mais do que cheio de ti
Sangrento
Infinito
Assustado
Um vazio que chegou sem aviso
e, pelo desfecho,
Sem vontade de ser preenchido.

Monday, July 11, 2011

Por vezes, basta uma palavra. Uma palavra no meio de outras. Uma palavra apenas. Para pôr em causa tudo o que se dava como certo. Uma palavra apressada. Uma palavra carregada de raiva. Uma palavra sem filtro. E tudo deixa de ser como era. Porque a palavra dita não tem volta. Por tantas outras palavras que se digam em seu auxílio.

Thursday, July 07, 2011



Apetecia-me dizer-te muita coisa... Mas muita coisa é muito pouco... E fica tão longe do que te queria dizer. Mais vale dizer-te pouca coisa. Na certeza de que o muito que te queria dizer está sempre longe de ser dito. E por muito que te dissesse estaria sempre longe do que te queria dizer. Por ora, digo apenas que te amo. Na certeza de que tu saberás o quanto te quero dizer.

Monday, July 04, 2011

Coisas de gaja



“Desculpe, qual é o seu aroma?”
“O meu aroma!”
“Sim, desculpe, pode dizer-me o perfume que usa?”
“Com certeza, é o Mademoiselle Chanel.”
“É óptimo. Peço desculpa por me ter armado em descarada mas é realmente muito bom.”
“Não tem importância. Também gosto muito. Costumo dizer que este é o meu cheiro. Já não consigo imaginar-me com outro.”
“Sabe, a menina desceu a escada e deixou um rasto misterioso. Não resisti.Tive mesmo de abordá-la.”
“Fez muito bem. Quantas vezes me reprimo de fazer abordagens do género e depois arrependo-me...”
“Estou a tentar mudar de perfume. O que estou a usar é muito doce e não combina com o Verão. Já tentei escolher um dos novos mas ou são muito florais ou muito cítricos. O seu perfume é perfeito. Vê-se que é uma pessoa de bom gosto. Obrigada. E peço desculpa mais uma vez.”
“Ora essa. Foi um prazer.”
“Bem haja.”

Tuesday, June 21, 2011

O relógio marca uma hora e qualquer coisa. Já perto das duas. H&M Chiado. Primeiro dia de promoções. Calor surreal. Mar de gente. Três anéis giros quase meus. Falta pagá-los. A fila é extensa. À volta grande azáfama. Cinquenta por cento de desconto. Clientes sedentos. Empregados sem mãos a medir.
Pano de fundo trivial. A destoar, um casal de ciganos com os filhos. São duas as crianças. Correm de um lado para o outro. Sem respeito por quem lá está. Parecem possuídas. Os adultos mexem em tudo. Mas tudo. Literalmente. Ela prova um vestido sobre o que tem vestido. Outro. E outro. Põe e tira túnicas. T-shirts. Casacos. Experimenta batom, colares e vernizes. Ele acompanha-a atento. Faz sinais de aprovação. Como se fossem adquirir cada peça referenciada. Falam alto. Projectam a voz. Repreendem as crias. Avaliam os preços. Indagam os empregados. A agitação excede a normalidade. Impossível não reparar. Grande manobra de diversão. Os “actores” são péssimos. Piores a cada minuto que passa. Baralham e dão de novo. Esgotam as ideias. Denotam desespero. Mas não desmancham o boneco. O segurança mostra-se atento. Até então discreto. Agora, bastante visível.
Chega a minha vez na caixa. Pago e saio. À porta uma carrinha da PSP. Cinco agentes com cara de caso. Coincidência ou não… Desconheço o desfecho da história. 

Friday, June 17, 2011

Se o acaso segreda
Por aí não vás
Dá alguma atenção
Vai antes por acolá
Nunca se sabe, então
Se o sinal é aviso
Contra escolhas más
Segue a intuição
Questiona o senso comum
E não esqueças
A verdade vem do coração.

Tuesday, May 31, 2011

Sorumbática. É como estou neste dia de chuva sem graça. Não faz frio nem calor. A sensação é de que acordei para me deixar ficar na cama. Ou no sofá. De manta aos pés e comando na mão. A visionar filmes românticos de qualidade discutível. Com um universo incomensurável de bolachas por companhia. De chocolate, claro. Por muito que se colem aos dentes. E se grudem nas ancas. Porque sim. Porque há prazeres que justificam. Apesar da factura que venha a pagar…

Friday, May 20, 2011

Sou de elogio fácil. Talvez por isso a minha mágoa e até desconfiança em relação às pessoas parcas em elogios. Fácil mas nem por isso menos honesto. Se gosto não me coíbo de expressar. Faço-o em relação a tudo: um look, uma obra de arte, uma atitude, um corte de cabelo, uma cor de um batom…

Às vezes fico doída com a falta de companheirismo, ou deverei dizer amizade?, dos meus amigos. Tenho este blog há anos sem algumas das pessoas que me são mais chegadas o terem visitado. E se o fizeram, fizeram-no pela calada. Sem manifestação. In loco ou outra. Apesar das minhas investidas. Que têm sido mais do que suficientes. Umas tácitas. Outras bem directas por sinal. E nada. Dói-me a indiferença, real ou aparente, daqueles que gosto.

Thursday, May 19, 2011

Estava eu a deambular por um site de emprego, a perscrutar a secção de comunicação e recursos humanos (just in case), quando me deparo com a seguinte oferta: “Faço broxes bons e baratinhos. Aproveitem fôfos.” Estou a transcrever ipsis verbis.
Depois de rir que nem uma perdida, fiquei a indagar: esta é puta batida ou recém-chegada à actividade? Seja nova ou pró, “bons e baratinhos” indicia desespero. Tipo pregão. Neste caso,  vende-se carne e não peixe.

Monday, May 09, 2011

Lembrámo-nos este fim de semana que estamos juntos há oito anos. Tenho feito por não contabilizar. Sou naturalmente adversa a datas e compromissos. Sempre me assustou a longevidade das relações. Considerava-a sinónimo de cumplicidade mas também de falta de chama. Agora sei que não é assim. Ou por outra, não tem de ser assim…
Quase me perco da intenção do texto. Que é anunciar-vos: estou apaixonada. Uns dias mais do que outros. Hoje estou mesmo muito, muito, muito. O amor renova-se a cada gesto. Já sabia que era assim. Agora tenho mesmo a certeza absoluta. Como costumava dizer quando era miúda, absoluta, sintética e analítica.
Há pouco, a sair de casa ouço o “Je t’aime Moi non Plus” no telemóvel. É o toque do meu amor. Identifico-me com o atrevimento apaixonado de Serge Gainsbourg e Jane Birkin. Tem a ver connosco.
“O que terá esquecido desta vez?”, pensei com a falta de paciência característica das manhãs de segunda-feira. Do outro lado, era a voz dele feita mel: “Amo-te muito, muito, muito. Tem um dia óptimo.” Deste lado, onde me encontrava, derreti-me. De tal forma que não encontrei palavras à altura do momento. Apenas consegui balbuciar “Também te amo muito.” Esqueci-me de reforçar. Muito, muito, muito.