Thursday, October 27, 2011




     A vontade de comer o gelado não é assim tanta, conclui Maria do Mar. Sobretudo depois de a dividir com a repulsa por aquele desconhecido. E, sem querer saber se ele é ou não uma pessoa importante, levanta-se tão de repente quanto se sentou. E dá-lhe com a mão no gelado, fazendo-o cair. Podia apanhá-lo entretanto, tal a falta de reacção do “maldito do velho”, mas prefere deixá-lo a derreter-se no chão. Enquanto isso corre  com todas as forças que consegue reunir, apavorada com a ideia de ser seguida. Vai de pernas a tremer e a rir descompassadamente. Histriónica de tão nervosa, mesmo sabendo que o dinamarquês ficara para trás. Vai no entanto aliviada por ter percebido a tempo que o gelado predilecto ia saber-lhe amargo. 
      De volta a casa, vai ao encontro da mãe. Que passa a ferro uma das muitas peças empilhadas e à espera de vez no cesto de vime. Segunda-feira é o dia de engomar. Sem proferir palavra abraça-a forte e, sem querer, desata num choro convulsivo. Para espanto de uma e outra. “O que andadaste a aprontar?”, indaga a progenitora, tentando disfarçar o zelo e a falta de jeito de quem abraça vezes sem conta com o coração e raramente com os braços. Maria do Amparo - o nome assenta bem no contexto - cala as perguntas que lhe ocorrem. Aguarda em silêncio que a filha acalme e explique o que se passa. De pouco serve o  compasso de espera. Refeita do susto e do nojo, a jovem desfaz o abraço, limpa o rosto e dá a cena por encerrada “Não é nada. Assustei-me com um velho com cara de mau que vi lá fora.” Nada mais acrescenta. Sabe que ao falar pode comprometer a liberdade. Sabe agora também que confiar em estranhos pode custar-lhe outros valores.

No comments: