Saturday, October 22, 2011

   O pai é pescador. E também pedreiro. Conhecido por Joaquim “o garanhão” pelo número de filhos amassados. É um homem rude. E de fisionomia enxovalhada, graças à corrosão do sal e do sol. Aparenta mais quinze ou vinte anos do que os que tem. Tosco mas de coração cheio de amor pela família que cresce a cada ano que passa. Para paradoxal alegria e desgosto que só o pobre conhece. Trabalhador esforçado, apesar das frequentes distrações pelas tascas da redondeza onde busca força anímica para alternar a faina do mar com a construção civil. A vida é que dita as regras deste jogo duro. São muitas as bocas para alimentar. E a fome não pode entrar pela porta. Não vá o amor sair pela janela. O ditado popular repetido vezes sem conta pela mãe ficou-lhe na memória. Talvez por isso tem no trabalho a maior benção. 
E sempre que os rendimentos escasseiam, porque o mar está ruím ou o volume de obras abranda, o medo toma-lhe conta dos nervos. Até na cama, onde o sono lhe foge, faz contas de somar e, principalmente, de subtrair. Para que nada falte em casa. Nada que é como quem diz o absolutamente necessário. Água, luz, gaz, comida na mesa. E o susbstrato para a alma num copo de vidro. Um não. Três, quatro ou cinco porque à falta de outros entretenimentos o vinho a martelo serve na perfeição. Entorpece os sentidos e aligeira as preocupações, ainda que por umas horas. Algumas vezes, poucas, chega a casa tão toldado que segue directo para a cama. Mas quase sempre vem com vontade de asneirar, carente de atenção. E sabe bem como consegui-la. Junta a prole à volta da mesa, e num discurso teatral, recorda o tempo de menino. As histórias são sempre as mesmas, com mais ou menos ênfase consoante a imaginação e a paciência. São quadros de pobreza. Como a narrativa das refeições de papas de milho acompanhadas de um rabo de bacalhau crú. O dito era pendurado sobre a mesa para que o cheiro chegasse a todos e desse a ilusão de conduto. 
Fica confortado com as gargalhadas que arranca dos filhos. De todas, sobressaem as da Maria do Mar. É tal a sonoridade que a mãe costuma avisá-la: "a rir assim qualquer dia derretes, filha".



        (...) Continua

No comments: