Thursday, November 20, 2008

Ao encontro do desencontro

“Ele não parece mais feliz. E eu deixei de saber quem sou...” A confidência deixa-me triste. E sobressaltada. Uma grande amiga mergulhou numa perigosa vertigem emocional. Decidiu ser a mulher que o marido idealizava. Acatou uma dica aqui, outra ali e abalançou-se no desafio. Hoje, reconhece o disparate. Depois de anular-se, dia após dia, ficou a perceber melhor o significado da solidão. Do egoísmo. Do amor. E da falta dele.
Enquanto lanchávamos, a Maria confidenciou-me as regras que orientaram (ou desorientaram a sua vida nos últimos meses. “Deixei de fazer perguntas. Mesmo que a intenção fosse meramente trivial. Não queria que o meu interesse se confundisse com desconfiança ou curiosidade desnecessária. Deixei de opinar. Por perceber que as minhas opiniões pouco importavam. Ou apenas importavam quando iam ao encontro das dele. Deixei de queixar-me. Por entender que afectava a atmosfera de boa energia que desejávamos. Deixei de conversar. Por recear perguntar, opinar ou queixar-me. Deixei de dormir. Porque as perguntas, as respostas e as declarações que reprimi passaram a atormentar-me quase todas as noites...”
“Meu Deus, Maria! E agora, o que vais fazer?”
“Não sei bem. Ando à procura do meu Ego. Entendes?” E , com um sorriso maroto, a contrastar com a atmosfera, ironiza: “Perdi o norte. E o sul também...”
Estava ainda a assimilar a informação e a procurar propiciar-lhe algum conforto, quando a minha amiga conclui o desabafo: “Para já, vou tratar dos papéis do divórcio. É estranho. A ideia era ser a mulher dos sonhos dele. Em vez disso, ele tornou-se o homem dos meus pesadelos.”

Wednesday, November 12, 2008

Do fundo das letras ao fundo do espaço

De visita à família, acompanhei um pouco a rotina de um dos meus sobrinhos: o Pedro. Ele tem seis anos, frequenta o primeiro ano e sai da escolinha todos os dias às 16 horas. Como os pais estão a trabalhar, quem o vai buscar é a minha mãe. No dia que cheguei, fui com ela.
Ao toque de saída, lá vinha ele todo saltitão com um bando de meninos e meninas à volta. Quase todos a chamar-lhe pelo nome. "O puto tem carisma", intuí com orgulho de tia.
Assim que nos vê, corre para a avó, dá-lhe um beijo gigantesco e pede autorização para jogar à bola. “São só dez minutos”, justifica de vozinha melada. E, antes de esperar pela resposta, segue cheio de confiança com os amiguinhos.
Acabado o jogo, seguimos para casa dos meus pais. Estávamos a lanchar quando o meu irmão chegou. Ninguém o esperava tão cedo. Conseguira escapulir-se. O Pedro não queria acreditar... Os seus olhos brilharam de excitação:
- "Que bom que chegaste, papá. Já tinha tantas saudades tuas!"
- "Quantas saudades?"
- "Muitas, muitas, muitas. Do fundo das letras ao fundo do espaço."
- "Como assim Pedro? Antes dizias que era do fundo do mar ao fundo do espaço. O que é que mudou?"
- "O mar tem fim, papá. E as letras são infinitas."
Poesia pura. Os meus ouvidos deleitaram-se. O meu coração esparramou-se de ternura. A propósito, repesquei na memória a incontornável frase de Caetano Veloso: "Nem que eu bebesse o mar encheria o que tenho de fundo..."

Tuesday, November 11, 2008

Doce inocência

Eulália era pequenina, espevitada e gulosa. Era também inocente. Como são, aliás, todas as crianças com seis ou sete anos. Um certo dia, uma prima da mãe - proprietária da mercearia mais conhecida da aldeia - lança-lhe o desafio: “se disseres à tua professora “vai p’ó caralho” ofereço-te este boião cheio com os teus rebuçados preferidos”. Ela fica num reboliço. Até saliva, em reflexo condicionado. Mas - embora desconheceça o teor da expressão - pressente tratar-se de uma proposta indecente. Ou pelo menos pouco decente. Advinha-lhe de imediato o tom maroto. Daí não a ter acatado logo.
Deixa-a “na gaveta” por uns dias. Até uma manhã em que se sente contrariada pela educadora e deixa escapar: “Vá p’ó caralho.” Atónita, a professora chama-a ao canto da sala e prega-lhe com afinco dez reguadas em cada mão. O castigo deixa-a num choro convulsivo. Mais tarde, quando a mãe a vai buscar à escola, encontra-a ainda desfigurada. Quando a questiona sobre o sucedido, a pequena exibe o estado deplorável das mãozinhas e rebenta de novo num pranto. O ardor que ainda sente, a mágoa pela agressão que sofrera e o receio de nova reprimenda adiam as explicações por uns minutos. Mas, sob insistência e à medida que se acalma, relata toda a história.
Ainda sem querer acreditar, a mãe corre ao estabelecimento da prima. A discussão é de tal ordem que não resta espaço para mais nada. Apenas para uma grande zanga. Os rebuçados, esses, continuam nos frascos, empoleirados no balcão da mercearia. A menina entretanto cresce e com ela cresce também a mágoa pelo incumprimento da promessa feita.
Já adolescente, ela, a irmã e os pais mudam-se de malas e bagagens para a Capital. E é dentro do táxi que os leva até o combóio, que avista ao fundo da rua um vulto a aproximar-se. É a prima Gertrudes que, embora pesada e a sofrer das articulações – corre a uma velocidade nunca antes vista. Traz com ela um embrulho debaixo do braço que - mesmo antes do veículo arrancar - estende a Eulália. E, num soluço emocionado, explica: “Estes são os rebuçados que te prometi há uns aninhos atrás. Perdoa-me.”