Tuesday, November 11, 2008

Doce inocência

Eulália era pequenina, espevitada e gulosa. Era também inocente. Como são, aliás, todas as crianças com seis ou sete anos. Um certo dia, uma prima da mãe - proprietária da mercearia mais conhecida da aldeia - lança-lhe o desafio: “se disseres à tua professora “vai p’ó caralho” ofereço-te este boião cheio com os teus rebuçados preferidos”. Ela fica num reboliço. Até saliva, em reflexo condicionado. Mas - embora desconheceça o teor da expressão - pressente tratar-se de uma proposta indecente. Ou pelo menos pouco decente. Advinha-lhe de imediato o tom maroto. Daí não a ter acatado logo.
Deixa-a “na gaveta” por uns dias. Até uma manhã em que se sente contrariada pela educadora e deixa escapar: “Vá p’ó caralho.” Atónita, a professora chama-a ao canto da sala e prega-lhe com afinco dez reguadas em cada mão. O castigo deixa-a num choro convulsivo. Mais tarde, quando a mãe a vai buscar à escola, encontra-a ainda desfigurada. Quando a questiona sobre o sucedido, a pequena exibe o estado deplorável das mãozinhas e rebenta de novo num pranto. O ardor que ainda sente, a mágoa pela agressão que sofrera e o receio de nova reprimenda adiam as explicações por uns minutos. Mas, sob insistência e à medida que se acalma, relata toda a história.
Ainda sem querer acreditar, a mãe corre ao estabelecimento da prima. A discussão é de tal ordem que não resta espaço para mais nada. Apenas para uma grande zanga. Os rebuçados, esses, continuam nos frascos, empoleirados no balcão da mercearia. A menina entretanto cresce e com ela cresce também a mágoa pelo incumprimento da promessa feita.
Já adolescente, ela, a irmã e os pais mudam-se de malas e bagagens para a Capital. E é dentro do táxi que os leva até o combóio, que avista ao fundo da rua um vulto a aproximar-se. É a prima Gertrudes que, embora pesada e a sofrer das articulações – corre a uma velocidade nunca antes vista. Traz com ela um embrulho debaixo do braço que - mesmo antes do veículo arrancar - estende a Eulália. E, num soluço emocionado, explica: “Estes são os rebuçados que te prometi há uns aninhos atrás. Perdoa-me.”

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