Tuesday, October 21, 2008


O rouxinol do Metro

Costumava ser presença habitual nas viagens de metro entre o Oriente e a Alameda. Quase todas as manhãs chegava à estação por volta das nove e meia. À mesma hora do que eu. Vinha sempre cabisbaixo, de bengala na mão, andar arrastado e mochila às costas. Ficava de pé, num dos cantos da carruagem, metido apenas com ele próprio. Focado nos fantasmas do passado, nas preocupações do presente ou nos receios do futuro, especulava para os meus botões. A avaliar pelo olhar longínquo e pela expressão algo atormentada que trazia no rosto de marialva de outros carnavais. A “advinhação” é um dos meus passatempos favoritos, como com certeza se percebe.
Não havia dia que não assobiasse antigas canções portuguesas. Soprava afinado e com desvelo “Cartas de Amor”, “A Agulha e o Dedal”, “Aldeia da Roupa Branca”, “Estranha Forma de Vida” e outras. Legados de um tempo que não volta mais. Como a mocidade, parecia lamentar o intérprete. Ao contrário da Primavera que, segundo diz a canção e muito bem, vai e volta sempre. Por coincidência ou nem por isso, parecia um rouxinol no despontar da estação das flores. Assobiava sem critério de escolha temas alegres, tristes e assim, assim. Ao sabor do estado de alma que o acompanhava, presumo. Havia dias e dias.
Para mim também havia dias e dias. Aqueles em que me deixava embalar pelas canções. Distraíam-me do sono, afugentando uma ou outra cisma do momento. E outros, confesso,  em que me enervavam um pouco. Acicatavam o desconforto das noites mal dormidas ou das manhãs mal acordadas.
Há meses que não o vejo. Nem lhe oiço os assobios. Que é feito do rouxinol do metro? Faz-nos falta, mesmo quando ignorava o sentido de oportunidade. Com ele, as viagens matinais da linha vermelha ganhavam uma aura especial.


No comments: