Thursday, November 20, 2008

Ao encontro do desencontro

“Ele não parece mais feliz. E eu deixei de saber quem sou...” A confidência deixa-me triste. E sobressaltada. Uma grande amiga mergulhou numa perigosa vertigem emocional. Decidiu ser a mulher que o marido idealizava. Acatou uma dica aqui, outra ali e abalançou-se no desafio. Hoje, reconhece o disparate. Depois de anular-se, dia após dia, ficou a perceber melhor o significado da solidão. Do egoísmo. Do amor. E da falta dele.
Enquanto lanchávamos, a Maria confidenciou-me as regras que orientaram (ou desorientaram a sua vida nos últimos meses. “Deixei de fazer perguntas. Mesmo que a intenção fosse meramente trivial. Não queria que o meu interesse se confundisse com desconfiança ou curiosidade desnecessária. Deixei de opinar. Por perceber que as minhas opiniões pouco importavam. Ou apenas importavam quando iam ao encontro das dele. Deixei de queixar-me. Por entender que afectava a atmosfera de boa energia que desejávamos. Deixei de conversar. Por recear perguntar, opinar ou queixar-me. Deixei de dormir. Porque as perguntas, as respostas e as declarações que reprimi passaram a atormentar-me quase todas as noites...”
“Meu Deus, Maria! E agora, o que vais fazer?”
“Não sei bem. Ando à procura do meu Ego. Entendes?” E , com um sorriso maroto, a contrastar com a atmosfera, ironiza: “Perdi o norte. E o sul também...”
Estava ainda a assimilar a informação e a procurar propiciar-lhe algum conforto, quando a minha amiga conclui o desabafo: “Para já, vou tratar dos papéis do divórcio. É estranho. A ideia era ser a mulher dos sonhos dele. Em vez disso, ele tornou-se o homem dos meus pesadelos.”

Wednesday, November 12, 2008

Do fundo das letras ao fundo do espaço

De visita à família, acompanhei um pouco a rotina de um dos meus sobrinhos: o Pedro. Ele tem seis anos, frequenta o primeiro ano e sai da escolinha todos os dias às 16 horas. Como os pais estão a trabalhar, quem o vai buscar é a minha mãe. No dia que cheguei, fui com ela.
Ao toque de saída, lá vinha ele todo saltitão com um bando de meninos e meninas à volta. Quase todos a chamar-lhe pelo nome. "O puto tem carisma", intuí com orgulho de tia.
Assim que nos vê, corre para a avó, dá-lhe um beijo gigantesco e pede autorização para jogar à bola. “São só dez minutos”, justifica de vozinha melada. E, antes de esperar pela resposta, segue cheio de confiança com os amiguinhos.
Acabado o jogo, seguimos para casa dos meus pais. Estávamos a lanchar quando o meu irmão chegou. Ninguém o esperava tão cedo. Conseguira escapulir-se. O Pedro não queria acreditar... Os seus olhos brilharam de excitação:
- "Que bom que chegaste, papá. Já tinha tantas saudades tuas!"
- "Quantas saudades?"
- "Muitas, muitas, muitas. Do fundo das letras ao fundo do espaço."
- "Como assim Pedro? Antes dizias que era do fundo do mar ao fundo do espaço. O que é que mudou?"
- "O mar tem fim, papá. E as letras são infinitas."
Poesia pura. Os meus ouvidos deleitaram-se. O meu coração esparramou-se de ternura. A propósito, repesquei na memória a incontornável frase de Caetano Veloso: "Nem que eu bebesse o mar encheria o que tenho de fundo..."

Tuesday, November 11, 2008

Doce inocência

Eulália era pequenina, espevitada e gulosa. Era também inocente. Como são, aliás, todas as crianças com seis ou sete anos. Um certo dia, uma prima da mãe - proprietária da mercearia mais conhecida da aldeia - lança-lhe o desafio: “se disseres à tua professora “vai p’ó caralho” ofereço-te este boião cheio com os teus rebuçados preferidos”. Ela fica num reboliço. Até saliva, em reflexo condicionado. Mas - embora desconheceça o teor da expressão - pressente tratar-se de uma proposta indecente. Ou pelo menos pouco decente. Advinha-lhe de imediato o tom maroto. Daí não a ter acatado logo.
Deixa-a “na gaveta” por uns dias. Até uma manhã em que se sente contrariada pela educadora e deixa escapar: “Vá p’ó caralho.” Atónita, a professora chama-a ao canto da sala e prega-lhe com afinco dez reguadas em cada mão. O castigo deixa-a num choro convulsivo. Mais tarde, quando a mãe a vai buscar à escola, encontra-a ainda desfigurada. Quando a questiona sobre o sucedido, a pequena exibe o estado deplorável das mãozinhas e rebenta de novo num pranto. O ardor que ainda sente, a mágoa pela agressão que sofrera e o receio de nova reprimenda adiam as explicações por uns minutos. Mas, sob insistência e à medida que se acalma, relata toda a história.
Ainda sem querer acreditar, a mãe corre ao estabelecimento da prima. A discussão é de tal ordem que não resta espaço para mais nada. Apenas para uma grande zanga. Os rebuçados, esses, continuam nos frascos, empoleirados no balcão da mercearia. A menina entretanto cresce e com ela cresce também a mágoa pelo incumprimento da promessa feita.
Já adolescente, ela, a irmã e os pais mudam-se de malas e bagagens para a Capital. E é dentro do táxi que os leva até o combóio, que avista ao fundo da rua um vulto a aproximar-se. É a prima Gertrudes que, embora pesada e a sofrer das articulações – corre a uma velocidade nunca antes vista. Traz com ela um embrulho debaixo do braço que - mesmo antes do veículo arrancar - estende a Eulália. E, num soluço emocionado, explica: “Estes são os rebuçados que te prometi há uns aninhos atrás. Perdoa-me.”

Tuesday, October 21, 2008


O rouxinol do Metro

Costumava ser presença habitual nas viagens de metro entre o Oriente e a Alameda. Quase todas as manhãs chegava à estação por volta das nove e meia. À mesma hora do que eu. Vinha sempre cabisbaixo, de bengala na mão, andar arrastado e mochila às costas. Ficava de pé, num dos cantos da carruagem, metido apenas com ele próprio. Focado nos fantasmas do passado, nas preocupações do presente ou nos receios do futuro, especulava para os meus botões. A avaliar pelo olhar longínquo e pela expressão algo atormentada que trazia no rosto de marialva de outros carnavais. A “advinhação” é um dos meus passatempos favoritos, como com certeza se percebe.
Não havia dia que não assobiasse antigas canções portuguesas. Soprava afinado e com desvelo “Cartas de Amor”, “A Agulha e o Dedal”, “Aldeia da Roupa Branca”, “Estranha Forma de Vida” e outras. Legados de um tempo que não volta mais. Como a mocidade, parecia lamentar o intérprete. Ao contrário da Primavera que, segundo diz a canção e muito bem, vai e volta sempre. Por coincidência ou nem por isso, parecia um rouxinol no despontar da estação das flores. Assobiava sem critério de escolha temas alegres, tristes e assim, assim. Ao sabor do estado de alma que o acompanhava, presumo. Havia dias e dias.
Para mim também havia dias e dias. Aqueles em que me deixava embalar pelas canções. Distraíam-me do sono, afugentando uma ou outra cisma do momento. E outros, confesso,  em que me enervavam um pouco. Acicatavam o desconforto das noites mal dormidas ou das manhãs mal acordadas.
Há meses que não o vejo. Nem lhe oiço os assobios. Que é feito do rouxinol do metro? Faz-nos falta, mesmo quando ignorava o sentido de oportunidade. Com ele, as viagens matinais da linha vermelha ganhavam uma aura especial.


Thursday, October 16, 2008

Parabéns super mamã

Ufa! O Gonçalo nasceu. Fruto de muito amor, determinação e fé. E também da valentia e coragem da mamã: a minha amiga Gi.
Uns dias antes, os médicos disseram-lhe com as letras todas: “corres risco de vida no parto”. Mas estas letras são as minhas. Já que as letras ditas foram outras. Menos figuradas. Mais desumanas. As letras ditas nem pretendiam ser dissuasoras da gravidez. Já era tarde demais para isso. Foram ditas às trinta e duas semanas de gestação. Foram ditas na eminência de vida do bebé.
Durante algum tempo acreditou-se que a minha amiga Gi não podia ser mãe. “É cientificamente improvável”, disseram-lhe os médicos. Os mesmos que a felicitaram pelo milagre da gravidez. Os mesmos que a pouco tempo do parto a condenaram. E semearam uma onda de angústia à sua volta.
A notícia da impossibilidade de engravidar caíu que nem uma bomba na vida da Gi. Das potentes. Ela, que desde adolescente sonhara casar de véu e grinalda e constituir família. Ela, cujos olhos brilhavam sempre que via uma criança. Ela, que não continha as lágrimas sempre que o tema maternidade vinha à conversa.
Quando o impacto da bomba se reduzia a uma ligeira poeira, eis que cai outra bomba. Esta de outro alcance. Afinal, a minha amiga – de cirurgia marcada para extrair miomas, útero e companhia – estava gravidíssima. No meio científico ninguém percebia como. Houve dúvidas e, sobretudo, receios.
A decisão de deixar o processo seguir não abraçou consensos. Foram meses difíceis, feitos de internamentos, repousos absolutos, esperanças e desesperos. Chegou a equacionar-se o desfecho mais trágico. Mas a Gi acreditou no sonho. E lutou por ele.
Parabéns, mamã.

Tuesday, September 23, 2008


Os três estarolas

Entrámos na mesma estação. Eu, com destino à Alameda. Eles, não sei ao certo. Vão à procura de alimento ou, quase advinho, de susbstituto para o vício. São três toxicodependentes. Companheiros na dura jornada. Parecem clones, tantas as características que os aproximam. Sub-nutridos, desdentados, rudes, mal trajados.
Estão agitados. Um deles mostra-se bastante arreliado. Não tardo a perceber porquê. Uma vez sentados, a conversa prossegue a alta voz:
- A sério, pá. Nunca mais lá ponho os pés. Ou então, p’à próxima vou directamente à defesa do consumidor. Foi a terceira vez qu’esta porra m’aconteceu. Da primeira desconfiei mas não tinha bem a certeza. À segunda, topei logo o esquema. Então agora é que vi mesmo o parvalhão pôr o pastel de nata no micro-ondas. O gajo não percebe qu’isto pode lixar o estômago dum gajo...
- Pois é, páaa... Já há dias comigo foi a mesma treta. O gajo vendeu-me um mil-folhas com dois ou três dias. Aquela porcaria até custava a passar a goela. Juro páaa, até ficava agarrado. Gaaanda filho da mãe.
- Opá, nestas coisas o melhor é um gajo deixar de lá ir. Poça, com tantos sítios p’ra comprar bolos... Eles que se lixem. Caga neles, pá.
- Caga neles, não. Fazem a mim, fazem a outro. Os gajos não prestam, pá. Já viste isto? Aquela porcaria faz mal. Ainda ficamos todos arruinados. E porquê? Porque os sacanas são uns sovinas. Não é à toa que eu tenho dores de barriga, pá. Eles querem é vender. Tão-se a lixar p’ó gajo. Entendes? Da próxima vez nem digo nada: pego na porcaria do bolo e vou logo p’à Deco. Isto não fica assim. Juro que não...
- Fazes bem, bacano. Tem de ser. Senão os gajos abusam dum gajo, páa. Bora sair...
- Bora lá, pá...
Partem da forma que chegaram. Agitados. Cúmplices. E, quero acreditar, esperançosos. Tal e qual os três estarolas dos desenhos animados. Apenas mais reais. Mais perdidos. Mais tristes.




Monday, September 15, 2008

Mimeticamente tristes ou tristemente miméticos

Nos filmes de ficção científica é comum o extra-terrestre incorporar a vítima, assumindo o seu aspecto. A ideia é ludibriar as próximas vítimas...
As pessoas de fraca personalidade ou baixo índice de auto-estima tendem a fazer o mesmo. Ou algo parecido. Assumem gradualmente o esterótipo da sua “musa”. Em pouco tempo de convivência passam a falar, vestir e estar como a pessoa que admiram. Ou de quem têm inveja (que é uma espécie de admiração não assumida).
Há até os que vão ao pormenor de “vestir” os tiques e trejeitos mais singulares, chegando a embrenhar-se de tal forma na transferência de personalidade que se esquecem da noção de ridículo. A identificação é, por vezes, tão abrangente que há quem se convença ser mais autêntico do que o original. Pior ainda é quando estas carapaças de ocasião usurpam a alma da sua figura de referência.

Monday, July 28, 2008

Yasmina

Esta manhã conheci Yasmina. Uma menina com três meses de idade, cara de anúncio Cerelac e sem vontade de sorrir.
Vinha ao colo do pai, um jovem emigrante de leste, ainda imberbe. Parecia irmão dela. E cioso da preciosidade que embalava, ao contrário da bebé, vinha de rosto aberto. Mostrava uma expressão cheia de vaidade, ternura e dentes estragados. Não parava de brincar com Yasmina. Sempre na expectativa de abrir um sorriso naquela boquinha fechada. Mas não foi bem sucedido. Pelo menos no tempo em que os observei.
Cheguei a sentir-me inquieta. Tudo divergia nestes dois seres. O ar gaiato no rosto do jovem que mal teve tempo de ser criança. Os lábios hirtos da menina que ainda só devia ter razões para sorrir.
A beleza imaculada no rostinho rosado de porcelana dela. O semblante enxovalhado dele. E as mãos típicas de quem conhece a dureza do trabalho. Sujas, maltratadas e grosseiras.
O contraste era grotesco.

Monday, June 23, 2008

Juntos mas separados

É incrível o número de casais de meia idade que encontro na rua. Quase todos – sobretudo os de clásse média e média baixa – convergem numa particularidade: o elemento masculino caminha cerca de um metro à frente. Não vão de mãos dadas. Não vão abraçados. Nem sequer vão lado a lado. Ela até por vezes dá uma espécie de corridinha intercalada para poder acompanhá-lo. Mas logo, logo, ele volta a destacar-se e assume a dianteira. Como que a deixar bem claro: “Calma aí, nada de confianças. Vamos juntos mas separados.”
Ainda hoje num raio de meio quilómetro observei esta espécie de coreografia em três pares distintos. Que coisa! Juntos. Mas separados.
Um quadro ilustrativo do nacional machismo. Mas por que se adianta ele aqueles centímetros? Pretende abrir alas para a mulher passar? Quer fazer-se passar por “single”? A mulher causa-lhe embaraço? Ou, simplesmente, está farto de a aturar?
Seja qual for a motivação, é triste. É triste ver de fora. Ainda mais triste deve ser sentir por dentro.

Tuesday, June 17, 2008

Santa Maria Mãe de Deus

“Santa Maria Mãe de Deus!” O piropo mais simpático que um desconhecido me dirigiu. E tenho ouvido muitos por estes dias. Não por ser irresistível mas porque ao lado da minha casa está a ser concluída uma mega obra de construção. Se é que me faço entender... Voltando ao piropo, não é inédito. Não deve uma palavra à imaginação. Foi proferido por um trolha sem rosto. E evoca o nome de Deus em vão... Mas trazia com ele alma. E expressividade.
Soube-me mesmo bem ouvi-lo. Sobretudo porque surgiu dois dias depois de outro. “Esta gaja não vale um c...” Juro que teria ignorado não fosse o contexto. TPM. Poucas horas de sono. Desconforto em relação à toilete acabada de escolher. E, sejamos francos, uma afirmação desta natureza é efectivamente demolidora. Deixou-me devastada. Não que dê importância a estes “mimos” de rua. Mas doeu. Nunca ninguém me tinha descrito com tão baixos predicados. Não na minha cara. É que fora dela tanto me faz. A sério. Mas não, foi dito em voz alta. Ao vivo e a cores.
No mesmo instante, senti alguns pares de olhos anónimos sobre mim. Todos eles ávidos de curiosidade. Mal ou bem intencionados, todos olharam. Motivados por um desafio pouco dignificante. Ver a gaja que “não vale um c...” O que terão concluído? Valia ou não o dito membro? Continuo sem saber o que ficaram a pensar.
Mas, já agora, deixo-vos uma reflexão: qual o “valor de mercado” do respectivo? Como se avalia? Que premissas estão em jogo? É só para aferir a lógica da ilação que acabo de inventar: "Este c... não vale uma gaja." Que tal?
Santa Maria Mãe de Deus...

Monday, June 02, 2008

Diferença irritante

A par da óbvia diferença anatómica que distingue os homens das mulheres há um rol de sensibilidades que são específicas de umas e de outros.
A forma como vêem o contexto das coisas, por exemplo, é diametralmente oposta. Eu explico melhor. O sentido de oportunidade não significa o mesmo nas versões feminina e masculina. Aliás, a meu ver, os “machos” são mesmo destituídos desta noção. Por outro lado, as “fêmeas” dão por norma muita atenção aos enquadramentos...
Passo a ilustrar, a mulher raramente se atreve a comprometer o primeiro encontro, um jantar especial ou um momento romântico com o relato de um “flirt” antigo. Não interessa o quão antigo seja. Não interessa que pouco ou nada tenha significado (se nada significou por que se evoca o assunto?). Não interessa que a história tenha apontamentos de humor (a vontade de rir passa assim que a interlocutor(a) percebe que o centro da atenção é alguém que já esteve no seu lugar!). Interessa menos ainda saber de quem se trata. A abordagem é simplesmente desadequada.
Há momentos que devem acontecer apenas a dois. Sem fantasmas. Nem fantasminhas. Ponto final.

Monday, May 26, 2008

Esquisitices

“Tu também és uma esquisita da ...” Deixo a conclusão da frase ao critério de cada um. Que é como quem diz, à sua imaginação primária.
Há dois dias no metro fui surpreendida com a abordagem sui generis de uma avó à neta com cerca de sete anos. Seguia rumo à Alameda quando as duas entraram em Chelas. Vieram tumultuar o meu sossego num abrir e fechar de olhos.
Passo a explicar... A avó, de formas avantajadas, trazia jeans elásticos, decote generoso e cabelo descolorado. Trazia também o jeito gaiato de quem é nascida e criada num bairro pobre de Lisboa. Fez-se notar assim que entrou. Esbaforida, gesticulou para a menina sentar-se junto dela. Face à recusa daquela não hesitou evidenciar o “latim” que aprendeu na rua: “Tu também és uma esquisita da cona” ( aqui achei importante reproduzir a dita palavra). A afirmação foi proferida em tom absolutamente possante como se a razão fosse toda sua.
Fiquei em estado de choque. Não estava a acreditar nos meus ouvidos. Depois de uma breve troca de olhares com a senhora do lado não resisti a uma gargalhada. A essa seguiu-se outra e, até ao destino, fui acometida de um ataque de riso intermitente. Acho até que os meus abdominais agradeceram o exercício.
Ciente da asneira e querendo remediar o quadro, a idosa continuou a falar, mas noutro registo. Agora condescendente, acrescentou: “Mais queria ter cem netos do que ter-te a ti. Só as dores de cabeça que me causas...” E continuou numa ladaínha à beira do indecifrável. A criança, alheada dos desabafos da avó - talvez por que os ouve desde sempre - indaga com mel no olhar:
“Compras-me uma história?”
“Não senhora, a menina tem os livros da escola para ler.”
“Mas a professora não marcou trabalhos de casa, avó.”
“Ah não!? Mas que raio de professora é essa? Não entendo estas professoras modernas. Não querem é fazer nenhum.” Ao concluir a frase olha para mim em busca de aprovação. Preferi baixar os olhos porque me faltou coragem de abanar a cabeça em sinal de discordância absoluta.
Astuta, e na expectativa da minha atenção e - quem sabe - simpatia, a idosa resolveu desviar assunto. Virando-se de novo para a miúda, vestiu a capa de educadora a sério e choramingou: “Prometes à avó que nunca mais arrancas os pêlos?” “Eu não arranquei, raspei com a gilete da mãe...” Só então olhei para a criança e notei-lhe ausência de sobrancelhas. Senti de novo vontade de rir. E agora também de chorar. É que a criança era mesmo esquisita. Ela. A avó. E, provavelmente, a família toda. Mas era esquisita dos... Dos cornos, claro. Isto para não me distanciar muito do contexto.

Monday, March 24, 2008

O metro estava apinhado de gente. Problemas de ordem técnica provocaram um atraso significativo e consequente multidão.
“Que chatice...”, pensei contrariada. Estava mesmo com vontade de aproveitar a viagem para ler. Ando agora entretida com o manual do curso de reiki. E, claro, prefiro ler sentada e bem acomodada. Mas logo me lembrei de uma máxima bem a propósito: “apenas por hoje não me vou preocupar”. E, mesmo de pé, embrenhei-me na leitura.
Tão distraída me encontrava a descobrir mais sobre a harmonização das energias vitais quando um senhor já idoso me cede o lugar. Aceitei prontamente julgando-o de saída. E muito surpreendida fiquei quando, duas ou três estações à frente, reparei que ele ainda ali se encontrava. De pé, mesmo ao meu lado. Olhava com serenidade para mim. Perguntei-lhe, então, porque me oferecera o lugar, uma vez que não ia sair. Com a calma e sapiência de quem deixou de ter pressa há muito, explicou: “A menina está a ler. Eu tenho pouco ou nada para fazer. E muito tempo para me sentar...” A resposta apaziguou-me. Tinha tanto amor no olhar que encheu o meu dia de sol. Naquele momento intuí: este homem foi numa das suas vidas passadas o ancião mais sábio e importante de uma casta tribal. Senti ainda que, nessa ou noutra encarnação, as nossas vidas - a dele e a minha - haviam cruzado.

Monday, February 18, 2008


A fama e o proveito


Parece uma das historiazinhas de “Flagrantes da Vida Real” que costumava ler quando era miúda nas Selecções do Reader’s Digest que o meu pai assinava. Vou de auscultadores a ouvir Dulce Pontes numa vertigem de inexplicável beleza sonora a caminho da estação do Oriente. Estou a passar a cancela de acesso ao metropolitano em plena evasão dos sentidos, quando sou literalmente empurrada para as questões do quotidiano. É alguém que aproveita a minha passagem para entrar também. É um homem ainda jovem apesar do ar gasto e desiludido. Vem mal trajado, traz na mão uma garrafa de vinho de qualidade duvidosa e propaga um odor fétido à sua volta.
Ao precipitar-se sobre mim toca-me nas costas sem intenção, pregando-me um grande susto. Acontece tudo tão de repente que não consigo reprimir o grito. O desconhecido apressa-se numa lenga-lenga de desculpas: “Desculpe lá, menina. Assustei-a? Eu só queria entrar. Entende? Não me leve a mal, por favor…”
Faço que sim com a cabeça, já refeita do pequeno contratempo. A melodia “Amor a Portugal” está a chamar-me de volta. E tenciono prosseguir o caminho sem mais interrupções mas ele continua a explicar-se: “Olhe, ainda no outro dia por causa disto uma velhota começou a gritar que estava a ser assaltada. A mulher não se calava, mesmo depois de perceber que eu só queria passar. Entende? Era toda a gente a olhar para mim de lado. Senti-me mesmo mal, menina. Fiquei tão lixado, tão lixado, que logo a seguir no metro assaltei o marido dela. Já agora, porque não? Assim, tive a fama e o proveito. Ficámos logo conversados.”
Confrontada com o simplismo do argumento, não contive a gargalhada. Apesar de nada legitimar o assalto, por mais enervante que seja - e é - ter fama sem proveito. Por outro lado, duvido muito que tenha sido apenas esse o móbil do crime.



Friday, January 25, 2008


O autógrafo

Um frémito de emoção... Foi o que senti esta manhã no metro. À minha frente estava sentado o alpinista português mais conhecido do momento: João Garcia. Esse mesmo. Aquele que ficou com o nariz parcialmente desfeito e sem a extremidade dos dedos. Aquele que, como tantos outros, arrisca a vida sempre que se aventura numa expedição. Em nome de um objectivo desafiante: ir mais longe. Ir mais longe na escalada da montanha. Ir mais longe fisicamente. Ir mais longe na espiritualidade.
Assim que o metro arranca, um adolescente de look desportivo destaca-se do grupo que o acompanha e dirige-se a João Garcia. De olhos esbugalhados e sorriso rasgado, estende-lhe o caderninho quadriculado e a esferográfica. Por uns segundos, fica suspenso em silêncio num misto de embaraço e excitação até conseguir esboçar duas palavras: “Um autógrafo”. E volta a repetir: “Um autógrafo”. O "se faz favor” não sai. Fica-lhe preso na garganta. Tal é o medo do ridículo aos olhos dos amigos. O medo é injustificado, apetece-me dizer-lhe. Afinal não está a abordar um emergente da ficção televisiva. Trata-se de um herói nacional e, com a humildade de quem escalou os Himalaias e outros gigantes da natureza, retribui o pedido. Com os “côtos” da mãos, o alpinista recebe o caderno e deixa ficar algumas palavras antes de o devolver. Não sei o que escreveu. Mas pressinto uma mensagem bonita.
Ao aceitar o autógrafo, o jovem sorri e faz que sim com a cabeça numa coreografia nervosa e desajeitada. Uma vez mais, a timidez silencia-lhe as palavras. Percebo-lhe a emoção. Também a senti. Sentimos os três.